O sofrimento bíblico de Jó

O livro de Jó, segundo afirmam estudiosos, é obra de pelo menos dois autores diferentes que tinham compreensões diferentes, e contraditórias, de por que as pessoas sofrem. O modo como a história começa e termina – a narrativa do sofrimento justo de Jó, cuja resistência paciente à provocação é recompensada por Deus – contradiz os diálogos poéticos que compõem a maior parte do livro, no qual Jó não é paciente, mas desafiador, e nos quais Deus não recompensa aquele que fez sofrer, mas se impõe a ele e o obriga a se submeter. São duas visões diferentes do sofrimento, e para compreender o livro há que se compreender suas duas mensagens distintas.
O livro de Jó começa com uma descrição em prosa de Jó, um homem rico e devoto. A ação é transferida então para o céu, onde Deus fala com satanás, e faz elogios a Jó. Satanás não é o anjo caído que foi expulso do paraíso, o inimigo de Deus. É um dos seres celestiais que se reportam a Deus. Naquele momento, seu desafio tinha a ver com Jó. Deus diz sobre a vida impecável de Jó, e satanás afirma que Jó é probo apenas porque em troca é altamente abençoado. Se Deus tirasse o que Jó tem, insiste satanás, Jó “… toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face!” (Jó 1, 11). Deus não concorda e autoriza a tirar tudo de Jó. Satanás ataca a casa de Jó: os bois são roubados, as ovelhas são queimadas, os camelos são atacados e levados, todos os servos são mortos, e os filhos são destruídos por uma tempestade que arrasa sua casa. Deus permite que satanás tire tudo aquilo que Jó tem: seus bens, seus servos e seus filhos.
Como Deus previra, Jó não pragueja por seu azar; fica de luto e adora (Jó 1, 20). O narrador assegura que Jó não cometeu pecado nem imputou nada indigno contra Deus (Jó 1, 22). Em uma segunda rodada de ataques, satanás aparece perante Deus, que mais uma vez se gaba de Jó. Satanás diz que ele não amaldiçoou Deus porque não sofreu dor física. Mas, diz satanás a Deus, “Estende, porém, a tua mão, toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não blasfema contra ti na tua face!” (Jó 2, 5). Deus permite que satanás fira Jó (Jó 2, 7). A esposa de Jó o estimula a amaldiçoar a Deus, mas ele persiste na sua integridade (Jó 2, 9-10). Três amigos vão visitá-lo e confortá-lo: Elifaz de Tema, Baldad de Suás, e Sofar de Naamat (na verdade foram quatro, Eliú, filho de Baraquel, que surge do nada e entra na discussão). Eles fazem o que podem fazer: choram com ele, compartilham sua dor e se sentam com ele, silenciosos. É nesse ponto que começa o diálogo poético, no qual os amigos não se comportam como amigos, muito menos reconfortam, insistindo que Jó teve o que merecia. Os amigos têm coisas semelhantes a dizer ao longo dos muitos capítulos: Jó é culpado, deve se arrepender, e se o fizer, Deus se aplacará e voltará a abençoá-lo. Caso se recuse, estará simplesmente demonstrando sua resistência e obstinação perante o Deus que pune aqueles que merecem. Em seus discursos, dizem a Jó que ele está sendo punido por seus pecados, ou seja, eles assumem a visão clássica bíblica do sofrimento, a de que os pecadores recebem o que merecem. Jó continua a insistir em sua inocência, e pede a Deus que permita que ele apresente sua defesa. Exige uma audiência divina. Deus reprova.
A narrativa popular só é retomada na conclusão do livro, no final do capítulo 42. É óbvio que parte da narrativa popular se perdeu no processo de somá-la aos diálogos poéticos, pois quando ela se reinicia, Deus dá sinais de que está com raiva dos três amigos pelo que eles disseram, em oposição ao que Jó tinha dito. Nos diálogos poéticos, os amigos de Jó defendem Deus, e Jó o acusa. Assim, uma parte da narrativa popular deve ter sido eliminada quando os diálogos poéticos foram adicionados. Ao final dos diálogos com os amigos, Deus se manifesta e esmaga Jó com sua grandeza, atacando-o por pensar que ele, Deus, tem algo a explicar a um mero mortal. Jó se arrepende de seu desejo de defender seu caso perante Deus. Não há como saber o que os amigos disseram que ofendeu a Deus (se é que o fizeram). Deus recompensa Jó por passar no teste, e então devolve tudo o que tinha sido perdido, e dá a ele dez filhos. Deus é o responsável pelo sofrimento de Jó, instigado por satanás (Jó 2, 3). Não apenas a perda de propriedade, mas uma devastação do corpo e a morte dos dez filhos. É importante lembrar que Deus reconheceu que Jó era inocente. Deus devolve tudo o que Jó tinha perdido: perdeu dez filhos, e como recompensa dá a ele outros dez filhos e passa a ter uma vida próspera, morrendo em idade avançada. Em que esse autor estava pensando? Não há, em nenhum momento, explicação do porquê Jó sofre.
A única resposta é porque Deus é Todo-Poderoso que não pode ser questionado por meros mortais, e que a própria busca de uma resposta, o próprio impulso de compreender é uma afronta. Talvez o problema de Jó seja que ele tenha lido a literatura sapiencial (Provérbios) e os Profetas, e ache que deve haver uma ligação entre pecado e punição. Em Eclesiastes, o sofrimento apenas existe, e é necessário lidar com ele da melhor forma possível.
Algumas das discrepâncias entre a narrativa e a prosa com a qual o livro de Jó começa e termina (apenas 3 capítulos) e os diálogos poéticos (quase 40 capítulos), são os nomes do ser divino diferentes na prosa (quando é usado o nome de Senhor), e na poesia (a divindade é chamada de El, Elói e Shaddai). Também, o perfil de Jó é distinto nas duas partes do livro: na prosa, é um sofredor paciente; na poesia, desafiador e impaciente. Na prosa ele é elogiado; e na poesia, é atacado. A narrativa em prosa indica que Deus lida com seu povo de acordo com seu mérito; na poesia ele não faz isso. Na narrativa em prosa, o sofrimento é um teste para a fé; na poesia, o sofrimento permanece um mistério que não pode ser compreendido ou explicado. A resposta ao sofrimento é que não há resposta, e que não se deve procurar uma. Não se deve esperar que Deus lide de forma racional.