A fé

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Entende-se por fé o ato de crer. Como se pode crer em verdades naturais e verdades sobrenaturais, segue-se que há dois tipos de atos de crer. Um é o ato de crer natural, ou fé natural, pelo qual o homem crê e espera provar, na vida atual, o que crê, a partir da investigação natural da realidade que vê. Outro é o ato de crer sobrenatural, ou fé sobrenatural, pelo qual o homem crê e espera provar na vida futura o que crê, a partir da visão sobrenatural da realidade. Em um e outro caso, crer é um ato do intelecto que se dirige a um objeto, por ordem da vontade.

A fé religiosa não vê claramente a verdade. No entanto, ela tem um tipo de olho que lhe permite ver que algo é verdadeiro, ainda que não possa discerni-lo pela razão, a certeza. Ou ainda, não vê aquilo que crê, mas sabe, ao menos, que não o vê e que isso é verdade. Aquele que adere a Deus pela fé submete, simplesmente, seu espírito a Ele.

Assim, crer não é somente acreditar em Deus, mas também ter fé.

Para mim, a fé deve comportar dúvidas, não pode ser um salto cego num abismo.

A fé daquele que crê que Deus existe não diminui em nada a penosa força dos argumentos racionais, usados para demonstrar tal existência. Ela o ajuda a descobrir mais claramente a racionalidade neles: uma fé inabalável não dispensa a razão de querer argumentos evidentes.

Penso, também, que grande parte da criatividade, do comprometimento político e da fé religiosa são alimentados pelo medo da morte. O binário religião e medo é real.

Diz-se que a fé é uma virtude do homem, pois tem por sujeito o intelecto e é uma virtude causada por Deus, que tem o motivo e por objeto o próprio Deus, cujos efeitos são o temor filial e a purificação do coração.

O primeiro passo na via que conduz o pensamento em direção a Deus é a aceitação de revelação pela fé. Consiste em aceitar primeiro sem provas o que se trata precisamente de provar. Durante longos anos, Santo Agostinho buscou a verdade pela razão. Acreditou em certo momento tê-la encontrado por esse método. No entanto, após um período de ceticismo, atormentado pelo desespero de encontrar a verdade, ele constatou que a fé tinha permanentemente à disposição a mesma verdade que sua razão não pudera atingir.

Crer é um ato do pensamento tão natural e tão necessário que não se concebe a vida humana em que a crença não ocupe um lugar muito grande. Ela é tão somente um pensamento acompanhado de assentimento. Grande parte das opiniões está fundado unicamente no assentimento ao testemunho de outrem. Algumas não afetam a maneira de viver (como a crença na existência de personagens históricas mortas há muito tempo); outras, ao contrário, são tais que colocá-las em dúvida acarretaria uma desordem profunda nos sentimentos e na vida. A dor, a dimensão trágica da existência, o eterno fracasso humano, são redimensionados para um “eu” superior, o sonho humano de ser onipotente. Customizar Deus enriquece o projeto do homem.

A fé progride à medida que se estabelece e se desenvolve no contínuo e firme assentimento do intelecto e no livre consentimento da vontade.

Santo Agostinho (teólogo e filósofo, 354-430) disse que “a fé é virtude pela qual são criadas as coisas que não se veem.” Ele convida a abandonar o orgulho humano e a receber a verdade de que Deus oferece em lugar de querer conquistá-la: a fé torna-se então a primeira, a inteligência segue-a.

Hebreus 11, 1 diz: “Ora, a fé é a certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem.”

Tomás de Aquino (frade católico, 1225-1274) define a fé como uma virtude infusa por Deus no intelecto, que traz uma verdade a que o intelecto assente e um bem a que a vontade consente.

A definição de fé do Catecismo Romano do Concílio de Trento é: “Virtude da Fé é aquela pela qual assentimos plenamente a tudo quanto nos foi revelado por Deus”. E explica, “O fim que se propõe ao homem para a sua bem-aventurança é tão elevado que o não poderia descobrir a agudeza do espírito humano. Era, pois, necessário que o homem recebesse de Deus tal conhecimento. Esse conhecimento não é outra coisa senão a própria fé, cuja virtude nos leva a ter por certo o que a autoridade da Santa Madre Igreja (grifo meu) declarou ser revelado por Deus”.

A fé é uma adesão pessoal, não demonstrável, não comprovável. A força da religião é não ser racional.

Segundo Ken Wilber (pensador e criador da Psicologia Integral, 1949), a realidade vista como natureza mítica é encontrada em 80% dos princípios das religiões mais importantes, do xintoísmo ao cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e taoísmo, por exemplo. Além disso, 70% da população mundial encontra-se nos níveis mais baixos de desenvolvimento espiritual, isto é, no plano mítico, ou abaixo dele. No nível mágico-animista e mítico, Deus é visto como um senhor de barba e cabelos grisalhos, ou ainda, como um velho sábio. Jesus, por sua vez, é alguém capaz de andar sobre as águas e que foi parido por uma mulher biologicamente virgem. Todos esses mitos pré-racionais são considerados verdadeiros pela religião cristã.

Somente alcançará a salvação aqueles que tiverem fé. Os que antecederam a Jesus foram salvos? Onde estão? No limbo? Há imperfeição na fé?

 

A fé nos dias de hoje

A fé consola. A razão não conhece o seu princípio nem seu fim.

É comum hoje em dia as pessoas dizerem que são “espirituais, mas não religiosas”. A ideia geral é que religioso diz respeito a formas institucionais de religião – seus dogmas, mitos, crenças obrigatórias, seus antigos e desgastados rituais; enquanto espiritual significa valores pessoais, realidades internas, expressão do interesse último e experiência direta de um fundamento do Ser (Deus).

Paul Johannes Tillich (teólogo e filósofo da religião, alemão, 1886-1965) disse que espiritual refere-se ao que indica o principal interesse de uma pessoa. A fé está relacionada à angústia e ao desespero. É sempre uma irrupção do fundamento e do abismo do ser.

A fé está customizada. Cada um a adapta como lhe convém. Deus tornou-se subjetivo. A autoridade contemporânea, o “eu”, se sobrepõe a tudo. As pessoas têm o seu próprio Deus. Há a percepção de um Deus adaptado ao “eu”, Narciso está preservado. De forma geral, esqueceram o Pai Nosso: “… seja feita a Vossa vontade …” (grifo meu).

Uma pesquisa feita por uma revista renomada constatou que pouquíssimos brasileiros acreditam que serão condenados ao inferno. Todos se acham dignos do paraíso, conforme Leandro Karnal (historiador e cientista das religiões).

O Cristo redentor de Mateus 25 está em desuso. A parte da teologia que trata da salvação do homem, o Cristo redentor, está em ascensão. A Paixão de Cristo não é compreendida como um ato de sofrimento, mas tornou-se artístico.

Há uma adaptação da ideia religiosa voltada para a propaganda. A manifestação da fé está na camiseta, no adesivo, nas faixas. E o que ensina o evangelho? Não é incomum ver escrito em ônibus e em painéis de lojas a frase “Deus é fiel”. Faz sucesso o padre, o pastor, o sacerdote, o mulá ou o rabino que fale de cura e de prosperidade e não traga às pessoas a relação da existência, a dos compromissos.

As religiões de hoje servem para os direitos, nunca para os deveres. No entanto, o compromisso implica obrigações. Deus não quer somente o crescimento espiritual do homem, o seu amor, Ele quer também a sua prosperidade.

Os rituais (as missas, os cultos) de hoje precisam ser catárticos, cheios de energia positiva. Cada vez mais os discursos têm muito sentido semântico e prático. A fé tornou-se midiática: a marcha de Jesus em São Paulo, o Sírio de Nazaré em Belém do Pará, e as missas do envio celebradas por bispos, cardeais e os papas, e por pastores renomados, reúnem milhares de pessoas.

Nesse tempo de crise, de confinamento, assisti pela televisão ao Papa Francisco rezando uma missa com o Vaticano vazio. Ele estava em um palco central, apenas com um ajudante. Uma imagem plástica, de rara beleza. Pensei: a providência divina envia o Covid 19 para expurgar os pecados humanos, para ensinar, ser um exemplo, para sermos mais humanos e termos compaixão e justiça. Por fim, o Papa perdoa os pecados do crente católico. Novamente pensei: como é possível, num ato papal, perdoar-se os pecados do homem? Quem tem essa fé de acreditar nesse perdão, na purificação dada pela autoridade?

A fé atual é uma forma de prisão necessária. Será que ela se tornou uma forma sofisticada de ateísmo religioso? O homem quer se aproximar de Deus para ter garantias e prosperidade. No entanto, a verdadeira fé, a que faz alguém dar os seus bens aos pobres, como a de São Francisco; a fé que muda a vida de um homem dissoluto, como a de Inácio de Loyola, essa muito poucos exercem. Essa é a fé de entrega a um verdadeiro plano superior.

Quanto às religiões orientais, o new age se faz presente. É moda as pessoas meditarem, fazerem ioga, retiros, imergirem nos ensinamentos dos gurus. Existem aplicativos para que se medite. Eu mesmo fiz cursos sobre como meditar. O budismo para os ocidentais é sinônimo de meditação. Os devotos sentem energias diversas. O carma e o dharma são usados livremente. O pensamento idolátrico cria tudo.

Como os muitos problemas estruturais, econômicos, sociais e culturais permanecem, os discursos religiosos têm cada vez mais importância diante do vazio em que se vive.  Hoje, na minha opinião, há descomprometimento do fiel, dogmas insustentáveis e muitos questionamentos quanto às autoridades e aos livros sagrados. Creio que o maior problema das igrejas judaico-cristãs, hoje, por exemplo, é cristianizar os cristãos. Esse é o grande desafio.

A obra de Mary Shelley, que escreveu Frankstein, conta a história de um médico que, costurando partes de cadáveres, a ele dá a vida, usando a eletricidade, e esse ser criado o destrói. Prevalece a ideia de que o mundo é um lugar de extrema opressão, desespero e privação.  A fé é a grande aposta na expectativa, na esperança.

No livro A vida em Pi, um menino indiano encontra três homens. Cada um tem uma fé diferente e lhe explica a sua religião. Todas são igualmente válidas e ele não sabe qual escolher. Então, ele não escolhe.