Felicidade

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“Depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?”

Clarice Lispector

 

A felicidade não é absoluta, é um processo, um movimento, um equilíbrio, uma vitória, só que instável (é possível ser mais ou menos feliz). Mas é frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeçada. Não se trata de viver no instante, mas de viver no presente. Não há opção. Deve-se estabelecer uma relação presente com o passado (a memória, a fidelidade, a gratidão) e uma relação presente com o futuro (o projeto, a previsão, a confiança, os fantasmas, a imaginação, a utopia). Contanto não se tornem realidade os sonhos.

Não imagino a felicidade permanente, contínua, fixa, perpétua. A verdade é que há momentos de alegria: pode-se chamar de felicidade todo espaço de tempo em que a alegria parece imediatamente possível. Ou talvez a felicidade seja sincronizar as ilusões pessoais de sentido, com as ilusões coletivas predominantes. Contanto que a narrativa pessoal esteja alinhada com as narrativas das pessoas à volta, é possível se convencer de que a vida encontra felicidade nessa convicção.

No romance de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, publicado em 1932, no auge da grande depressão mundial, a felicidade era valor supremo e os medicamentos psiquiátricos substituíam as eleições como base da política. A cada dia, cada pessoa tomaria uma dose de algum medicamento sintético que a tornasse feliz, sem prejudicar sua produtividade e eficiência. A visão de futuro de Huxley é muito mais perturbadora do que a de George Orwell em 1984. O mundo de Huxley parece monstruoso, mas é difícil explicar por quê. Todo mundo está feliz o tempo todo – o que poderia haver de errado nisso? O desconcertante mundo de Huxley é baseado no pressuposto biológico de que a felicidade é igual ao prazer. Ser feliz é nada mais nada menos que experimentar sensações corporais agradáveis. Uma vez que a bioquímica humana limita o volume e a duração dessas sensações, a única maneira de fazer as pessoas sentirem um nível elevado de felicidade por um longo período é manipular seu sistema bioquímico.

Os biólogos sustentam que o mundo mental e emocional é governado por mecanismos bioquímicos definidos por milhões de anos de evolução. Como todos os outros estados mentais, o bem-estar subjetivo não é determinado por parâmetros externos como salário, relações sociais ou direitos políticos. Em vez disso, é determinado por um complexo sistema de nervos, neurônios, sinapses e substâncias bioquímicas como serotonina, dopamina e oxitocina. Ninguém fica feliz por ganhar na loteria, comprar uma casa, obter uma promoção ou encontrar o amor verdadeiro. As pessoas ficam felizes por terem sensações agradáveis em seu corpo. Uma pessoa que acabou de ganhar na loteria e pula de alegria não está reagindo ao dinheiro. Está reagindo a vários hormônios que inundam sua corrente sanguínea e à tempestade de sinais elétricos pipocando em diferentes partes do seu cérebro. Nunca se reage a acontecimentos no mundo exterior, somente a sensações que ocorrem no corpo. O cérebro não foi projetado para a euforia.

Pensemos em um instante na família e nos amigos. Todos conhecem algumas pessoas que estão sempre relativamente alegres, não importa o que aconteça com elas. E há aquelas que estão sempre insatisfeitas, não importa o quanto o mundo seja prazeroso. As pessoas tendem a acreditar que, se pudessem ao menos mudar de trabalho, casar, fazer a viagem dos sonhos, comprar um carro novo ou quitar o empréstimo estariam nas nuvens. Mas, quando conseguem o que desejam, não parecem mais felizes. Isso não muda a bioquímica. Pode estimulá-la por um breve instante, mas logo volta-se ao ponto inicial. Parece que se vive doente no futuro.

Façamos um exercício: comparemos um agricultor americano de duzentos anos atrás com um banqueiro de Wall Street em Nova Iorque de hoje. O agricultor vivia em uma casa sem aquecimento com vista para um curral de porcos, ao passo que o banqueiro de hoje mora em uma bela cobertura com todos os últimos aparatos tecnológicos e uma vista para o Central Park. Intuitivamente, seria de se esperar que o banqueiro fosse muito mais feliz do que o agricultor. No entanto, cabanas, coberturas e o Central Park não determinam, de fato, o humor. A serotonina, sim. Quando o agricultor de duzentos anos atrás terminava de construir sua casa, seus neurônios cerebrais secretavam serotonina, levando-o a um nível de prazer. Quando o banqueiro quita o pagamento de sua cobertura, neurônios cerebrais secretam uma quantidade similar de serotonina, levando-o a um nível de prazer muito próximo ao do agricultor quando terminou de construir sua casa. Em consequência, o banqueiro não seria nem um pouco mais feliz do que seu bisavô, o agricultor.

Felicidade implica explorar e experienciar. Até o momento, o que se tem é uma incapacidade de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la objetivamente. A maioria dos estudos reconhece apenas a existência do prazer. Entrega-se a tendência de resolver os conflitos a partir do ego, a tendência a obter aquilo que o ego deseja ou intenciona. Tende-se a pensar que os humanos são especiais e, portanto, merecem todos os tipos de privilégios. À medida que o coração universal se abre, os sentimentos de empatia que se tem pelo mundo-totalidade aumentam. Passa a haver um sentido-propósito, não com um enfoque egoísta, mas animado pelo poder e a paixão do impulso de um serviço significativo. Embora as situações da vida possam não se transformar, pelo menos em curto prazo, a atitude pode e, de fato, se transforma. A vida se torna significativa e tem-se a percepção de que se está fazendo a coisa certa, no lugar certo e no momento certo. Talvez a compreensão mais fundamental que acompanha a percepção expandida seja a apreciação e a experiência mais profundas do significado da felicidade. Falta, no entanto, quase sempre, a criatividade para a produção de alimento espiritual.

 

Carta sobre a felicidade (a Meneceu)

O que deveria ser uma carta do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), a seu amigo Meneceu acabou se tornando uma das principais obras da Antiguidade. A busca pela felicidade é o tema central, e os caminhos para se chegar a ela seguem por duas razões: a saúde do corpo e a serenidade do espírito.

Epicuro envia suas saudações a Meneceu

Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de se dedicar à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.

Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la. Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.

Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.

Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses, ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.

Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efémera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.

Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.

O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.

Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.

Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas, uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades.

Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.

Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.

Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.

Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.

É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.

Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.

Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.

Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.

Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tomam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.

Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas. Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanhara a censura e o louvor?

Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.

Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.

Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.

 

Tradução baseada na edição de Arrighetti. Epicuro. Opere. Torino, 1973. ©2007 CEFA e Portal Brasileiro da Filosofia.