A agricultura dos primórdios e a sua influência na criação dos deuses
A agricultura com excedentes produtivos iniciou na Era Neolítica, por volta de 9500-8500 a.C. onde hoje se localizam a Turquia e o Irã, quando o homem deixou de ser nômade e migrou para o sistema de caça e coleta. Consistiu na domesticação de diversas espécies de plantas e animais, o que permitiu uma grande mudança no estilo de vida dos humanos e abriu caminho para o surgimento das religiões.
A descoberta da agricultura teve consequências: não foi o crescimento da população nem a sua superalimentação que decidiram o destino da humanidade, mas a teoria que o homem elaborou ao descobrir a agricultura, que adveio do seu desenvolvimento cognitivo. O que ele viu nos cereais, o que ele aprendeu nesse contato, o que ele compreendeu do exemplo das sementes que perdem a sua forma debaixo da terra, tudo isso constituiu a lição decisiva. A agricultura revelou ao homem a unidade fundamental da vida orgânica.
As sínteses mentais formuladas foram fundamentais para a evolução da humanidade só foram possíveis depois da descoberta da agricultura.
Nessa nova sociedade, a concepção das divindades é a importância crescente dos valores vitais, da vida no horizonte do homem que produz. O culto aos deuses tem por finalidade assegurar a chuva, a fertilidade dos campos e a riqueza da comunidade.
No cerimonial e na técnica agrícola, o homem interveio diretamente: participou da vida vegetal e do sagrado da vegetação, manipulando-os e conjurando-os. Para o homem primitivo, a agricultura, como toda atividade essencial, não era uma simples técnica profana. Ligada à vida e prosseguindo o desenvolvimento prodigioso da vida presente nas sementes, na terra cultivada, na chuva e na vegetação, a agricultura é um ritual.
As religiões teístas, como o judaísmo, justificavam a economia agrícola com mitos cosmológicos, especulando sobre a origem e formação do mundo. Suas principais celebrações eram para comemorar a colheita. A Bíblia, com sua crença na singularidade humana, foi um dos subprodutos da Revolução Agrícola que deu início a uma nova fase das relações entre humanos e animais. As religiões animistas descreviam o universo como uma ópera chinesa com um elenco ilimitado de atores de todas as nuances. As religiões teístas reescreveram o texto com apenas duas personagens: o homem e Deus. Anjos e demônios sobreviveram à transição e tornaram-se mensageiros e servos de grandes deuses. Mas o restante do elenco animista, todos os animais, plantas e demais fenômenos naturais, foi transformado em um cenário emudecido. De fato, alguns animais eram considerados sagrados para este ou para aquele deus, e muitos deuses apresentavam feições de animais: o deus da mitologia egípcia, Anúbis, tinha cabeça de chacal, e mesmo Jesus Cristo era frequentemente descrito nas escrituras como um cordeiro. Indra, o deus do céu no hinduísmo, é constantemente comparado a um touro. A sua réplica iraniana, Verethragna, aparece na Zaratrusta sob a forma de touro, garanhão, carneiro ou bode, ou seja, símbolos do espírito macho e combativo.
Até então, o homem tinha sido apenas um ator num elenco de milhares. No novo drama teísta, os humanos tornaram-se os heróis principais em torno dos quais girava todo o universo. Os deuses, enquanto isso, receberam dois papéis inter-relacionados para representar. Primeiro, eles explicaram o que há de tão especial no que tange ao homem e por que os humanos deveriam dominar e explorar todos os outros organismos. O cristianismo, por exemplo, sustentava que os humanos deveriam manter o domínio sobre o resto da criação porque o Criador lhe outorgara essa autoridade. Além disso, de acordo com o cristianismo, Deus atribuiu uma alma imortal somente aos humanos (somente aos Homo sapiens?). Uma vez que o destino dessa alma eterna é o ponto crucial de todo o mundo cristão, e uma vez que animais não têm alma, eles são meramente figurantes. Assim, os humanos tornaram-se o ápice da criação, ao passo que todos os demais organismos são empurrados para o segundo plano.
Além disso, os deuses teriam de realizar uma mediação entre os humanos e o ecossistema. No cosmo animista, todos falavam com todos diretamente. Se alguém precisasse de alguma coisa, de um cavalo, de uma figueira, das nuvens ou das rochas, era só se dirigir a eles. No mundo teísta, não era mais possível falar com árvores e com os animais. O que fazer, então, quando se quisesse que as árvores dessem mais frutos, as vacas dessem mais leite, as nuvens trouxessem mais chuvas e as pragas deixassem suas colheitas em paz? Era aí que os deuses entravam em cena. Eles prometiam chuva, fertilidade e proteção, contanto que os humanos fizessem algo em troca. Essa era a essência do acordo agrícola. Os deuses salvaguardavam e multiplicavam a produção agrícola, e, em troca, os humanos tinham de compartilhar sua produção com os deuses. Esse acordo servia a ambas as partes, à custa do restante do ecossistema.
Grande parte da mitologia teísta explica os detalhes sutis desse acordo. Os peregrinos não vinham de mãos vazias. Traziam consigo ovelhas, cabras, galinhas e outros animais, que eram sacrificados no altar divino, depois cozidos e comidos. Os coros que entoavam os salmos quase não eram ouvidos acima dos berros de bezerros e cabritos e dos balidos das ovelhas. Sacerdotes em roupas ensanguentadas cortavam a garganta das vítimas, colhiam em jarros o sangue que esguichava e o derramavam sobre a terra e as plantas. O perfume do incenso se misturava aos odores de sangue coagulado e de carne assada, enquanto enxames de moscas zumbiam por toda a parte (Números 28, Deuteronômio 12, 15-27 e 1 Samuel 2, 12-17). Era a magia agrícola – os sacrifícios eram realizados em tempo de secas e de flagelos meteorológicos.
A história do dilúvio tornou-se o mito fundador do mundo agrícola (Gênesis 8, 10-22). Interpretações tradicionais o veem como uma prova da supremacia humana. Segundo essas interpretações, Noé foi instruído a salvar o ecossistema inteiro para poder proteger os interesses comuns de deuses e humanos. Organismos não humanos não têm valor intrínseco, existem somente para nosso benefício e foram poupados. Afinal, quando “o Senhor viu quão grande se tornara a iniquidade da raça humana”, Ele decidiu “varrer da face da Terra a raça humana que criei (criou), e com eles os animais, as aves e as criaturas que rastejam no solo, pois arrependo-me de tê-los criado” (Gênesis 6, 7). Como pode o Deus onipotente e onisciente arrepender-se da sua criação? E como esse Deus bondoso pode querer destruir a sua criação? Não haveria outras formas de corrigir as mazelas humanas? A Bíblia acha que é perfeitamente correto destruir todos os animais como punição pelos crimes dos humanos, como se a existência de macacos, peixes e pássaros tivesse perdido todo o propósito em razão do mau comportamento dos humanos. No entanto, a Bíblia não conseguiria imaginar um cenário no qual Deus se arrependesse de ter criado o homem pecaminoso da face da Terra.
Os deuses conferiram ao homem autoridade sobre o reino animal, mas essa autoridade carrega algumas responsabilidades. Por exemplo, aos judeus foi ordenado permitir que os animais descansem no shabat e, na medida do possível, evitar causar-lhes sofrimentos desnecessários. Afinal, “Deus é bom para todos e tem compaixão por tudo o que criou” (Salmo 145, 9). O bíblico “Não matarás” refere-se apenas a humanos. No entanto, todas as religiões, inclusive o budismo, o hinduísmo e o jainismo, encontraram motivos para justificar a superioridade humana e a exploração dos animais, se não pela carne, então pelo leite e pela força muscular. Lao-Tsé, o fundador do taoísmo filosófico e uma divindade no taoísmo religioso, deixa sua terra em direção ao oeste, sentado em uma vaca. Todas as religiões alegavam que uma hierarquia natural dos seres autorizava os humanos a controlar e usar outros animais, contanto que certas restrições fossem respeitadas. O hinduísmo, por exemplo, santificou as vacas e proibiu o consumo de carne bovina, mas também apresentou a justificativa definitiva para a indústria de laticínios, alegando que vacas são criaturas generosas e, positivamente, anseiam por partilhar seu leite com a humanidade. Era fácil, pois, acreditar na existência desse pacto porque ele refletia a rotina cotidiana de vida agrícola.
A mais primitiva forma de religião era a adoração de deuses que representavam as forças da natureza. Os povos primitivos acreditavam que as calamidades naturais eram uma expressão da ira dos deuses ou obra de um deus diabólico e destrutivo que se opunha ao deus benevolente.
Com os deuses vieram as religiões, que podem ser definidas como um sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença em uma ordem sobre-humana. Isso ajuda a tornar inquestionáveis algumas leis fundamentais, garantindo, desse modo, a estabilidade social.