Crer ou crer
Raramente há ciência do quanto a crença ou descrença afeta o que realmente se vê. Em geral, o ego é culturalmente condicionado. Em consequência disso, não apenas se age de acordo com as crenças e com a visão de mundo predominante, como também a identificação é tão poderosa que não é possível ver o que não se consegue imaginar. Quando há a capacidade de imaginar alguma coisa, cria-se uma imagem dela com a qual se pode relacionar por meios energéticos e informacionais, e sintonizar com um novo fenômeno. Quando se pode imaginar um fenômeno e acreditar em sua realidade, consegue-se experimentar efetivamente essa realidade.
Existe uma área da sociologia chamada construcionismo social da realidade, que se preocupa com a descoberta de modos pelos quais os indivíduos e os grupos criam sua realidade percebida. Envolve olhar para as maneiras pelas quais os fenômenos sociais são criados, institucionalizados e transformados em tradição. Construção social descreve realidade subjetiva mais que a objetiva, isto é, a realidade como é percebida ao invés da realidade como ela pode ser. A realidade verdadeira pode corresponder à realidade como é conhecida, ou na verdade pode ser muito diferente do modo como é percebida. Toda sociedade é, assim, uma “religião”: a religião científica, a religião consumista, não importa o quanto elas tentem se disfarçar omitindo ideias religiosas e espirituais em suas vidas.
Por que as pessoas acreditam que há um Deus, que é todo-poderoso, sumamente sábio, totalmente bom e que criou o mundo? Como pensam que sabem essas coisas? Há três argumentos clássicos a favor da existência de Deus, segundo o autor de Conhecimento de Deus, Alvin Plantinga: o argumento cosmológico, remontando ao mundo antigo e, em particular a Aristóteles; o argumento ontológico, formulado primeiro por Anselmo da Cantuária no século XI; e o argumento do desígnio evidente ou argumento teológico. Todavia, os crentes em Deus não se têm baseado tradicionalmente em provas ou argumentos para sua crença. Se os teístas não acreditam em Deus com base na argumentação, qual é a base de sua crença? Se não há base, não será a crença em Deus arbitrária? Qual é a probabilidade de uma crença ser verdadeira, dado ser produzida pelas faculdades perspectivas, ou por uma faculdade mais específica, como a visão, ou a audição?
Talvez se possa dizer que uma crença está justificada se for uma resposta responsável e apropriada aos indícios, e se for produzida por uma faculdade cognitiva, ou processo, confiável, por exemplo, que produz uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras relativamente às falsas, neste e em outros mundos possíveis próximos. Há inúmeros sistemas de crenças religiosas que diferentes pessoas aceitam: budismo, hinduísmo, confucionismo, taoísmo, xintoísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo e muitas outras. No seio de religiões específicas, como o cristianismo ou o islamismo, os seus adeptos discordam muitas vezes, por vezes sobre questões que são consideradas essenciais para a salvação. Trata-se de um ponto crucial.
Também há que se considerar que no passado houve muitas religiões associadas com sociedades primitivas e com outras mais avançadas. Outro ponto importante é o de que nenhuma das religiões hoje existentes remonta ao começo da história humana. É necessário ponderar, reitero, que é difícil dissociar as crenças religiosas que uma pessoa aceita e a cultura em que ela foi criada. Em todos esses aspectos, as crenças religiosas contrastam com o que acontece no caso das crenças perspectivas, crenças de memória e crenças sobre relações dedutivas, não sendo de modo algum o que seria de esperar se houvesse uma faculdade interna para se chegar a crenças religiosas. É pouco provável que os humanos tenham uma faculdade que seja especificamente direcionada para a formação de crenças religiosas.
A crença não tem nada de irracional. Ela está fundada na credibilidade de alguns testemunhos e diz respeito, por consequência, ao que se refere à discussão racional à qual os submetemos. Temos, portanto, dois tipos de conhecimento: das coisas vistas e das coisas acreditadas. Naquelas que vemos ou que vimos, nós mesmos somos as testemunhas; naquelas que acreditamos são outros testemunhos que determinam nosso assentimento, quer atestem por escrito a verdade que nós mesmos não vimos, quer provem-na por palavras ou por qualquer outro gênero de testemunho.
Para Tomás de Aquino crer é um ato pelo qual o intelecto é determinado a aderir-se totalmente a algo que se lhe apresenta a vontade (…) que elege assentir com determinação e precisão (…) porque esse algo é suficiente para mover a vontade, não, porém, para mover o intelecto, enquanto parece bom ou conveniente o assentir a esse algo (…) e essa é a disposição do que crê, como quando alguém crê nas coisas ditas por um homem, porque lhe parece adequado ou útil. Assim, crer é a adesão do intelecto ao que consente a vontade como um bem, porque nesse bem há verdade que não contraria os princípios do próprio intelecto, motivo pelo qual o próprio intelecto assente ao que consente à vontade.