A Epopeia de Gilgamesh

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A Epopeia de Gilgamesh foi composta em acadiano, mas descobriu-se, também, a versão sumeriana. É a mais popular criação babilônica, uma das mais comoventes histórias da busca da imortalidade. O herói é Gilgamesh, o quinto rei da primeira dinastia de Uruk, da Suméria, e data de aproximadamente entre 2800-2500 a.C.

Essa saga começa com os excessos de um misto de herói e tirano, que revela, em última análise, a inaptidão das virtudes “heroicas” para transcender radicalmente a condição humana. Gilgamesh tinha dois terços de um ser divino, filho da deusa Ninsun e de um mortal.

O texto inicialmente o exalta, mas pouco depois ele é apresentado como um déspota que viola mulheres e extenua os homens com duros trabalhos. Os habitantes de Uruk imploram aos deuses e estes decidem criar um ser de porte gigantesco, capaz de enfrentar Gilgamesh. Esse semisselvagem, que recebeu o nome de Enkidu, vivia nas florestas e nada sabia do homem nem do cultivo da terra. Era o símbolo máximo do ser incivilizado, rude e primitivo. Gilgamesh fica sabendo da existência dele inicialmente em sonho, e, em seguida, por meio de um caçador que o vira. Envia então uma cortesã para enfeitiçá-lo com os seus encantos e conduzi-lo a Uruk. Conforme estava previsto pelos deuses, os dois se enfrentam logo que se veem. Gilgamesh sai vitorioso, mas fica amigo de Enkidu, e dele faz um companheiro.

Gilgamesh emprega seu vigor em aventuras heroicas. Acompanhado de Enkidu dirige-se para a floresta, guardada por um ser monstruoso e onipotente, Huwawa. Os dois heróis o matam, depois de lhe terem cortado o cedro sagrado. Ao entrar em Uruk, Gilgamesh é notado por Ishtar. A deusa pede-o em casamento, mas ele a rejeita. Humilhada, Ishtar roga a seu pai Anu que crie o “touro celeste”, a fim de destruir Gilgamesh e sua cidade, Uruk. Anu nega-se a princípio, mas dobra-se à vontade da filha quando esta ameaça fazer com que os mortos dos infernos ascendam. O “touro celeste” arremete contra Uruk, e os seus mugidos fazem cair às centenas os guardas do rei. Enkidu, porém, consegue agarrá-lo pelo rabo, do que se aproveita Gilgamesh para cravar-lhe a espada. Furiosa, Ishtar escala as muralhas da cidade e amaldiçoa o rei. Inebriado com a vitória, Enkidu arranca uma coxa do “touro celeste” e lança-a diante da deusa, cobrindo-a de censura ultrajante. É o momento culminante na carreira dos dois heróis.

Naquela mesma noite Enkidu sonha que foi condenado pelos deuses. No dia seguinte, adoece, morrendo doze dias depois. Durante sete dias e sete noites Gilgamesh chora a morte do amigo e recusa-se a enterrá-lo. Tinha a esperança de que suas lamentações acabassem por ressuscitá-lo. Só quando o corpo começa a se decompor é que Gilgamesh se rende diante dos fatos e Enkidu é sepultado. O rei abandona a cidade e vagueia pelo deserto, entre gemidos: “Será que me espera a mesma morte de Enkidu?” É aterrorizado pela ideia da morte. Os feitos heroicos já não o consolam. Doravante seu único objetivo é fugir à sorte dos homens, adquirindo a imortalidade.

Ele sabe que Utnapishtim, que sobreviveu ao dilúvio, vive para sempre, e decide ir à sua procura. Chega às montanhas Mâshu e encontra a porta por onde passa o Sol todos os dias. Ela está guardada por dois homens-escorpiões. O invencível herói fica paralisado de medo e se prosterna. Mas os homens-escorpiões reconhecem a parte divina de Gilgamesh e permitem que ele entre no túnel. Depois de andar doze horas nas trevas, Gilgamesh chega, do outro lado das montanhas, a um lindo jardim. A alguma distância, à margem do mar, encontra a ninfa Siduri e pergunta-lhe onde pode encontrar Utnapishtim. Siduri tenta dissuadi-lo: “Quando os deuses fizeram os homens, deram-lhes de presente a morte, guardando para si próprios a vida. Tu, Gilgamesh, trata de encher tua barriga e de aproveitar as noites e os dias. Faze de cada dia uma festa e, noite e dia, dança e te diverte.”

Mas Gilgamesh permanece firme na sua decisão e Siduri o encaminha para Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim, que se encontrava nas proximidades. Atravessam as águas da morte e chegam à margem onde vivia Utnapishtim. Gilgamesh pergunta-lhe como adquiriu a imortalidade. Dessa maneira toma conhecimento da história do dilúvio e da decisão dos deuses de fazer de Utnapishtim e sua esposa, parentes seus, instalando-os nas “fozes dos rios”. Mas pergunta Utnapishtim a Gilgamesh: “que deus te convidará para participares da assembleia dos deuses a fim de que obtenhas a vida que procuras?”. “Tenta ficar sem dormir seis dias e sete noites!”. Trata-se, certamente da mais dura prova iniciatória; vencer o sono, permanecer acordado, equivale a uma transformação da condição humana. Será que devemos entender que Utnapishtim, sabendo que os deuses não lhe dariam em recompensa a imortalidade, sugere a Gilgamesh a conquiste por uma iniciação? Gilgamesh adormece imediatamente, e Utnapishtim exclama: “Olha só o homem forte que deseja a imortalidade: o sono, qual vento violento, derramou-se sobre ele!” Gilgamesh dorme seis dias e sete noites, e, quando Utnapishtim o acorda, o rei censura-o por tê-lo despertado logo depois de ter adormecido. Dobra-se, porém, à evidência e começa novamente a lamentar-se: “Que fazer, Utnapishtim, aonde ir? Um demônio apoderou-se do meu corpo; no quarto onde durmo mora a morte e aonde quer que eu vá, lá está a morte!”.

Gilgamesh já se prepara para tornar a partir, quando, no derradeiro momento, por sugestão de sua mulher, Utnapishtim lhe revela um segredo dos deuses: o local onde se encontra a planta que devolve a juventude. Gilgamesh desce ao fundo do mar, colhe-a e, cheio de felicidade, retoma o caminho de volta. Ele não a come, mas a reserva para mais tarde. Após alguns dias de caminhada, avista uma fonte de água fresca e apressa-se nela a banhar-se. Atraída pelo perfume da planta, uma serpente sai da água, arrebata-lhe a planta e troca de pele (trata-se de um tema folclórico: ao despojar-se da sua velha pele, a serpente renova a sua vida). Em soluços Gilgamesh queixa-se ao barqueiro Urshanabi de sua má sorte.

Observa-se, na Epopeia de Gilgamesh, um exemplo da condição humana, definida pela inevitabilidade da morte, e que, porém, os deuses podem conceder a imortalidade quando quiserem.

As semelhanças narrativas encontradas entre a Epopeia de Gilgamesh e o Livro do Gênese iniciam-se logo nos primeiros versículos da Bíblia, ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu.

*Do livro História das Crenças e Ideias Religiosas, I, de Mircea Eliade – Editora Zahar.