A morte no monoteísmo

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Ao se viver sem ter em conta o julgamento divino e a punição ou recompensa eternas, os seres humanos, ao morrerem, encontrar-se-ão na necessidade ou de serem simplesmente aniquilados (se a religião for falsa), ou eternamente infelizes. O dogma de já se chegar endividados ao mundo, e ter-se de remir essa dívida com trabalho, faz a existência ser miserável, além de ter a morte como final. As pessoas se convencem de que a morte física não é a morte, e sim o começo de uma nova vida, e insistem nessa ideia. Não querem deixar a vida, e falam de uma outra vida, a da alma.

O filósofo e teólogo Blaise Pascal entendia a morte como sendo a punição de um pecado, que se separa de Deus, mas que esse mesmo Deus pode fazer o bem dando-lhe a felicidade eterna. Escreveu: “Só há bem nesta vida na esperança de outra vida.” Isso parece ser o salto religioso: esperar a felicidade para depois da morte. No quadro de miséria, a vida após a morte traz a principal, senão única esperança de felicidade. Por conseguinte, o bom uso da vida não é tão importante por si mesmo, mas sobretudo por poder propiciar a recompensa de uma outra vida, esta sim compatível com a natureza do homem tal como criado por Deus. “Sabemos que a vida é curta e efêmera e estamos continuadamente ameaçados pela morte. Deveríamos, então, desconsiderar as provas da religião só porque há a possibilidade de tudo acabar-se com a morte do corpo? Ou deveríamos investigá-las para ver se são fundamentadas em superstições?” Note-se que Pascal está apontando que o racional é investigar. Na perspectiva cristã, conforme escreveu Pascal à sua irmã Gilberte, quando da morte do pai, “Ele não deixou de viver, mas começou a verdadeira vida”. O horror à morte continua presente nela (sua irmã, Gilberte) e em todos os outros seres humanos, cristãos ou não cristãos. Como explicar isso?

Mais uma vez é preciso apelar ao dogma do pecado original. Depois do pecado, a vida corrompeu-se e tornou-se odiosa, enquanto a morte passou a ser a interrupção dessa vida impura. No cristianismo, mesmo em versões menos radicais que a de Pascal, sempre está em jogo uma recompensa futura. O verdadeiro foco do pavor da morte não é a ambiguidade em si, é o resultado do julgamento a que o homem é submetido: quando Adão transgrediu o mandamento divino, e Deus lhe disse: “terás morte certa”. Em outras palavras, o terror final da autoconsciência é o conhecimento da própria morte. Existem autores que afirmam, diferentemente das religiões judaico-cristãs, ser este o significado do mito do Jardim do Paraíso, a de que a angústia da morte é a mais intensa angústia do homem.

A teóloga Monika Renz, que acompanha muitas pessoas em processo de morte, diz: “Tomemos o conceito todo. Onde termina o todo, onde começa o todo, o que não pertence ao todo? É a quintessência da abundância, um conceito pertinente para aquilo que chamamos de Deus: o todo. No entanto, pensando bem, todo significa que, na verdade, nós, humanos, a ele pertencemos. Eu, você, ele e ela. E vejo em meu trabalho que esta é a última dimensão da experiência: ser parte desse todo. No dia a dia, sentimos muito pouco esse todo. Há um mecanismo de seleção que separa o ‘eu’ desse todo, de modo que não se percebe que se é parte dele.” Se existe vida após a morte, como no cristianismo, então, por simetria, deve existir vida antes da vida. A religião pode tornar o homem apto a encarar a morte mais serenamente.