A origem do inferno

Banner Background

O pensador francês Jean-Paul Sartre dizia que o inferno são os outros. Mas, antes disso, a ideia do inferno como um subterrâneo de chamas ardentes, governado por seres do mal, e o próprio Satã já haviam se estabelecido no imaginário popular. Engana-se, porém, quem acha que foi a Bíblia que introduziu esse conceito à cultura ocidental. As origens datam de muito antes do surgimento das letras gregas.

O conceito de “outro mundo”, antes mesmo de ser nomeado assim, era explorado a partir da ideia da viagem ao mundo dos mortos. Na Odisseia (um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuído a Homero, século VII a.C.), há a menção à katábasis de Ulisses no canto XI. No livro VI da Eneida (do poeta romano Virgílio, século I a.C.), também se pode acompanhar o descensus de Eneias. Parece que, nas duas obras, a inspiração foram registros mesopotâmicos do século XXI a.C.

No poema mesopotâmico Ana Kurnugê, qaqqari la târi (“Ao Kurnugu, terra sem retorno: descida de Ishtar ao mundo dos mortos”) – Ishtar era a mais célebre das deusas no panteão mesopotâmico, tinha como atributo a feminilidade, o amor e o sexo, mas também era a soberana da guerra, representada como colecionadora de amantes e vingativa –, o mundo dos que partiram é um “lugar de inanição, reclusão, silêncio e escuridão, do qual ninguém pode retornar”.

Ao descer no submundo, Ishtar provocou um abalo cósmico e causou o fim do ciclo de renovação da vida que se dá por meio da fecundação. Em outras palavras, a condição própria dos mortos (a impossibilidade de procriação) se estendeu aos vivos, afetando, inclusive, a tranquilidade dos deuses.

A ideia de um lugar ruim, para onde serão levados os que foram maus em vida, é fruto de um intenso sincretismo de ideias e concepções religiosas anteriores ao surgimento do cristianismo — especialmente o zoroastrismo, religião dualista da região da Antiga Pérsia. Guiados por Nabucodonosor, os babilônios foram parar em Jerusalém (587 a.C.), onde realizaram saques, destruíram o templo e deportaram parte da população local. Nesse período, israelitas vivendo na Babilônia tiveram contato com diferentes lendas e tradições mesopotâmicas, como as encontradas na “Epopeia de Gilgamesh”. Na obra, o mundo dos mortos é descrito como um reino de pó e das trevas, o que lembra a caracterização do Sheol judaico, apresentado como uma grande tumba cavernosa situada nas profundezas da Terra.

Antes do exílio babilônico, os judeus provavelmente não concebiam uma divisão entre céu e inferno. Só depois alguns deles passaram a crer na ideia de um juízo final, defendido principalmente pelos fariseus (nome dado a um grupo de judeus surgido no século II a. C. que defendia a Torah, os ensinamentos contidos nos cinco primeiros livros da Bíblia). O zoroastrismo influenciou fortemente o judaísmo no que se refere à ressureição, juízo final, à vinda de um Messias e à dualidade e luta entre o Bem (Aúra-Masda) e Mal (Arimã). A doutrina sobre a divisão entre os bons e os maus após a morte e até de uma espécie de purgatório (entre os zoroastristas, Hamestagan) para os que cometem bons e maus feitos, também vem daí.

Os cristãos absorveram o conceito de inferno como lugar de castigo e este é bastante delineado a partir do Novo Testamento bíblico. Nos evangelhos e cartas aparece a ideia de um lugar de fogo, tormentos e de “choro e ranger de dentes”. O inferno também passa a ser associado à figura de Lúcifer, que, expulso do ambiente celestial, acabou se tornando o maior inimigo dos cristãos e o responsável por precipitá-los no fogo eterno.

Assim, o inferno é uma construção narrativa plural. O inferno e o demônio se tornaram assunto de interesse entre importantes autores cristãos na Idade Média, como São Jerônimo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Tentações do Maligno se tornaram lugar-comum nos textos hagiográficos que narram, em prosa e verso, a vida dos santos. Apesar de todo esse histórico, o escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321) foi um dos primeiros autores a criar um quadro mais bem acabado do inferno. Isso, no entanto, só foi possível porque o escritor, de fato, revisitou obras e tradições variadas e sincréticas.

Foi também nesse período que a figura do diabo se estabeleceu de vez, como mostra o historiador Robert Muchembled em Uma História do Diabo (2000). A partir do século XII, a figura continuou sendo aperfeiçoada aos olhares cristãos. Isso se deu porque a Igreja viu necessidade de criar figuras mais ou menos críveis e uniformes de Lúcifer, bem como centenas de outros seres que o sucedem na hierarquia infernal — que nada mais é do que uma herança do Hades (deus da mitologia grega, do mundo subterrâneo) e do Mundo Inferior latino, na Antiguidade.

Gravuras e textos da Igreja acabaram criando uma estética específica da criatura do mal com cauda, chifres, garfo e características que dialogam também com o credo de povos pagãos, como celtas, latinos e nórdicos.

*texto de Lidia Zuin para o TAB.