Islamismo e o Corão
O islã apareceu na Arábia, a meio caminho entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Índico, em um ambiente pagão árabe, em contato com nichos de judaísmo e de cristianismo. Significa submissão. É uma religião monoteísta, que tem suas raízes na renovação ou reforma da antiga religião dos nômades árabes. Surgiu por volta do ano 570 da Era Cristã, no deserto do Hedjaz, onde hoje está a Arábia Saudita. Naquele ano, Mohammad – nome que foi traduzido para o português como Maomé –, recebeu as primeiras revelações de Deus Altíssimo, Alah, por intermédio do Arcanjo Gabriel, ocasião em que soube que havia sido escolhido como mensageiro. A revelação do arcanjo aconteceu num dos retiros que Mohammad realizava, em uma caverna, nas montanhas próximas à Meca. A primeira revelação se deu numa noite, quando lhe recitou a primeira Surata (capítulo) do livro sagrado islâmico, o Alcorão (significa recitação), escrito originalmente em árabe. Esse livro sagrado é composto por 114 Suratas, e foi ditado ao profeta Mohammad ao longo de 23 anos. Os islâmicos afirmam que na Noite do Decreto, no Ramadã, o Alcorão foi revelado para o profeta Mohammad, para a orientação da humanidade.
Mohammad, o fundador da religião, nasceu em Meca por volta de 570 d.C., na tribo dos coraixitas. Seu pai, Abdallâh, faleceu antes de seu nascimento e a mãe, quando Mohammad tinha seis anos de idade. Órfão, foi educado pelo tio, Abu Taleb. Aos vinte e cinco anos casou-se com uma viúva de quarenta anos, chamada Khadija. Quando tinha quarenta anos, pelo ano de 610 d.C., fez um retiro numa gruta do monte Hira e lá teve um sonho (uma visão em estado de vigília). Viu um ser sobre-humano que lhe deu a ordem de recitar um texto e o chamou de “enviado de Deus”. Esse texto consistia no que atualmente são os cinco primeiros versículos do capítulo 96 do Corão, onde foram reunidos os ensinamentos do profeta.
Passados dois anos da primeira visão, ou seja, em 612, esses fenômenos recomeçaram, e Mohammad teve uma visão celeste. Há apontamentos de que o profeta se encontrava em estado de conturbação fisiológica nesses momentos. Os textos que descrevem as primeiras visões de Mohammad não informam o porquê ele adotou essas práticas de ascese e de devoção. Eles apenas sublinham o lado religioso do seu caráter. A partir daí começa sua atividade de pregação religiosa. Mohammad morreu em Medina, em 632, por doença.
Duas cidades, Medina e Meca, são mencionadas na história do islã. Meca está situada a menos de 100 quilômetros do Mar Vermelho, no meio de montanhas absolutamente desérticas e possui o seu templo, a Caaba, edifício quase cúbico (há uma pedra preta, objeto de veneração, engastada ao lado leste). Medina está localizada a mais de 400 quilômetros ao norte de Meca, mais longe do mar. A Caaba era o centro de um culto pagão, com adoração de pedras sagradas, de divindades estelares etc. Medina tinha uma grande população judia (árabes judaicos), convertidos ao judaísmo.
O advento do islã permitiu aos árabes terem a sua própria religião, seu próprio profeta, seu próprio livro sagrado. No próprio Corão se ouvem ecos desse triunfo – assim, lê-se que Deus revelou o Corão aos muçulmanos árabes para que estes não tenham que dizer: “A Escritura só veio do alto para duas coletividades” (Corão 6, 157-156).
O Alcorão é o guia de todo muçulmano, orientando-o em relação aos preceitos espirituais bem como ditando normas para sua vida, seja nos aspectos sociais, econômicos ou políticos. Os pontos que constituem o núcleo da doutrina islâmica são: o monoteísmo e a revelação por intermédio de Maomé e o não reconhecimento da Trindade do cristianismo, que segundo a crença, é uma quebra do monoteísmo puro.
Por ordem de Deus Altíssimo, no ano de 622, Mohammad e seu grupo de seguidores emigraram para Medina. Esse evento ficou conhecido na história como hégira (fuga). Mohammad lutava para obter o controle da cidade de Meca, com acesso à relíquia sagrada da Caaba. A relíquia sagrada é a pedra negra, que conforme a crença, quando desceu do paraíso era branca, mas os pecados dos filhos de Adão a tornaram negra. Na mesquita, na cidade de Meca, na Arábia Saudita, há no meio do templo, um cubo feito de granito preto, a casa sagrada de Deus.
No Alcorão são mencionados profetas, entre eles Adão, Noé, Abraão, Moisés, David, Salomão, Jesus, além do profeta Mohammad. No total, segundo a crença, foram enviados 124 mil profetas à Terra. A cisma no mundo islâmico começou na época de Ali. Desde a morte de Maomé, seus seguidores acreditavam que Ali, por ser o parente mais próximo do profeta, era o sucessor natural. O partido de Ali, ou Shiat Ali, formou a base para o ramo do islã que hoje é conhecido como Shia. Assim, a principal dissidência no islã não foi causada por uma divisão ideológica, mas por um desacordo sobre quem devia ser o líder. A facção xiita (Shiat Ali) acreditava que o líder devia ser um descendente direto do profeta, ao passo que a facção maior, a sunita, julgava que a liderança cabia ao indivíduo que de fato controlava o poder.
O islã, atualmente, não tem um califa como líder. Um dos fundamentos da religião islâmica é crer nos anjos de Alah – há anjos para diversas funções. Maomé é apenas um intermediário, pois a verdadeira revelação ocorre no próprio Corão. As obrigações religiosas dos muçulmanos ou as ações práticas são: o credo, a oração, a caridade, o jejum, o bem, o dízimo, e a peregrinação a Meca. Os pilares da religião são: Deus é único e justo, a crença nos profetas e nos imames (líderes espirituais que difundem os ensinamentos e rituais), e a ressurreição. Tem cerca de 1,6 bilhão de adeptos no mundo. A Indonésia conta, sozinha, com mais de 130 milhões de muçulmanos. Com o conjunto do subcontinente indiano (Paquistão, Índia, Bangladesh), tem-se aí os dois blocos mais fortes de muçulmanos do mundo.
Os rituais
De início, a oração ritual era feita com o rosto voltado para Jerusalém, consoante o costume judaico. Também o jejum, de um dia por ano, o de Ashura (décimo dia do primeiro mês do ano lunar) também havia sido instituído de acordo com o costume judaico. Com a resistência do núcleo judeu de aderir aos costumes impostos por Mohammad, mudou-se a direção da oração, e os muçulmanos passaram a orar voltados para a Caaba de Meca. Além disso, o jejum de Ashura foi substituído pelo jejum do mês de ramadã.
Os muçulmanos, a partir da puberdade, têm a obrigação, a título pessoal, de fazer suas cinco orações rituais diárias (são chamadas salah). A guerra santa é uma obrigação coletiva que é imposta à comunidade enquanto tal.
As orações rituais e o jejum de ramadã marcam a comunidade e mantêm a vitalidade do islã. Nas sextas-feiras, ao meio-dia, os homens têm que se reunir na mesquita para a oração comum que comporta também um sermão.
A invocação pronunciada no decurso da oração ritual, ao levantar-se da primeira inclinação profunda, é “Senhor! A ti o louvor” (Rabbanâ Iaka I-hamd).
Existem também as orações especiais para cada uma das grandes festas do ano e outras preces em diversas ocasiões, como nos funerais.
As cinco orações rituais cotidianas são constituídas por uma oração elementar repetida com mínimas variantes, e 1 – a oração da aurora (desde o fim da noite escura, é repetida duas vezes); 2 – a oração do meio-dia (repetida quatro vezes); 3 – a oração pós-meridiana (após a metade da tarde, repetida quatro vezes); 4 – a oração do Maghreb (logo depois do pôr-do-sol, é repetida três vezes); 5 – e a oração da noite escura (uma hora e meia após o pôr-do-sol, repetida quatro vezes).
Para rezar, o muçulmano se põe sobre um solo puro (ou um tapete que serve para tal circunstância), descalço, para Meca ou para a Caaba (se está em Meca), e formula a intenção de recitar tal oração. A indicação de Meca, na mesquita, é o alinhamento ao mihrâb. A presença na mesquita é facultativa, com exceção às sextas-feiras.
A oração contribui para purificar quem a faz e para obter-lhe o perdão dos pecados.
As orações às sextas-feiras são presididas por um imane, qualquer muçulmano homem que tenha um mínimo de estudo do Corão, já que o islã é uma religião de leigos sem sacerdócio.
As festas muçulmanas são regidas, como os judeus outrora, pelos mesmos anos lunares. Portanto, a data de um evento em um ano difere da data no ano seguinte.
A festa mais celebrada é a recordação da hégira, isto é, do êxodo de Mohammad e de seus seguidores abandonando Meca para ir para Medina em 622.
O mês de ramadã é o mês que o Corão desceu do alto, de direcionamento para os homens (foi o mês da revelação do Corão). São 29 ou 30 dias de esforços, renúncias e de festas coletivas, além de jejum do nascer ao pôr-do-sol. Começa com uma declaração oficial das autoridades (mufti).
Todo muçulmano que atingiu a puberdade está obrigado ao jejum.
O jejum consiste em não ingerir nem alimento nem bebida (nem mesmo água) desde o fim da noite escura até o pôr-do-sol. Não se pode fumar nem manter relações sexuais. As proibições cessam no início da noite.
O ramadã é também é o mês em que a fome lembra aos ricos a existência dos pobres e em que se recomendam as esmolas.
A peregrinação a Meca (hajj) é uma obrigação de uma vez na vida. Todo muçulmano (ou muçulmana, quando acompanhada) adulto livre que disponha dos recursos necessários para a viagem e assegure a manutenção da família durante sua ausência deve ir a Meca. A peregrinação é um grande perdão que proporciona a remissão de todos os pecados anteriores.
As primeiras cerimônias efetuam-se individualmente na própria Meca, durante o 10º, 11º e o início do 12º mês; o peregrino dá ritualmente sete vezes a volta ao redor da Caaba, tendo o templo à esquerda.
O senso do sagrado e os costumes regulares são comuns aos muçulmanos. O peregrino pratica observâncias, muitas das quais lembram o Antigo Testamento. Por exemplo, no Antigo Testamento, o templo de Jerusalém, como todos os templos, é chamado Casa de Deus. Deus está presente nele de maneira peculiar. Três vezes ao ano, o fiel sobe a Jerusalém para as festas chamadas hag, em hebraico. A peregrinação muçulmana à Caaba de Meca é chamada de Casa de Deus. Os peregrinos são hóspedes de Deus, portanto há um sentimento divino mais forte. Meca é a nova Jerusalém.
A visita ao túmulo de Mohammad em Medina não é exigida, mas uma boa parte dos peregrinos aproveitam a viagem para ir rezar sobre o túmulo, na mesquita de Quba.
Jerusalém é, para o islã, a terceira das outras duas cidades santas. A mesquita Al-Aqsa, localizada na cidade velha de Jerusalém, é o terceiro local mais sagrado do islã. A mesquita foi construída no topo do Monte do Templo.
Há ainda diversas outras medidas que regulam o uso que o homem deve fazer de seus bens.
Existe uma tendência de os muçulmanos interiorizarem a sua fé e de não terem somente o ritual das orações obrigatórias e uma mentalidade jurídica.
A fé na presença de Deus, especialmente por ocasião das orações ou das recitações do Corão, é a base de todo um tipo de vida.
Deus vê tudo, sabe tudo, nada lhe escapa. Os muçulmanos vivem desse pensamento. Muitos repetem fórmulas, orações jaculatórias, contando-as nos seus rosários que servem para viverem na presença de Deus.
O islã, orgulhoso das suas realizações medievais no âmbito das ciências e das artes, aborda o mundo moderno pensando antes de tudo nos seus próprios valores humanos, que quer preservar e fiando-se, para adquirir ciências e técnicas, nas suas qualidades ancestrais que se comprovaram eficientes em tempos passados.
O Corão
As mensagens do Corão são muito simples: o anúncio do juízo último e ameaças contra os que merecem o fogo eterno, e garantia de felicidade para os eleitos.
Muitos textos do Corão transmitidos por Mohammad abordam questões legislativas. Regulamentam as dificuldades diante das quais se encontravam os crentes – leis da guerra, sobre o casamento, sobre a herança, os contratos, os empréstimos, o talião, as penas por cometer certos crimes, liturgia, obrigações religiosas, orientações políticas, soluções para dificuldades específicas da comunidade etc.
O Corão afirma que o islã é um retorno à pureza da religião de Abraão que construiu a Caaba com a ajuda de seu filho Ismael. Segundo o livro, também Abraão recebeu ordem de chamar os homens a fazerem a peregrinação a Meca. Abraão pediu a Deus que alimentasse o povo do lugar e enviasse um profeta aos árabes. A missão de Mohammad é, portanto, ligada diretamente a essa oração de Abraão.
A existência de Deus é tida como evidente e o Corão não procura prová-la: conforme o professor palestinense, Ismail al-Farûqui: “a essência do islã é o testemunho da unicidade de Deus ou, se preferirmos, a afirmação de que não há nenhuma divindade afora Deus”.
O Corão é muito combativo e apologético, serve-se de todos os argumentos para afirmar e reafirmar a unicidade de Deus (a unidade absoluta de Deus que descarta formalmente a noção de qualquer coisa participando da divindade).
A criação assume papel relevante, pois lembra ao homem a misericórdia de Deus que o alimenta e lhe proporciona aquilo de que tem necessidade. Mostra também o poder de Deus, capaz de dar vida e, portanto, restituí-la no dia em que o homem ressuscitará dos mortos.
A tradição junta noventa e nove nomes divinos, a maioria deles tomados do Corão.
O ponto do credo que se refere aos anjos parece ser vivido diversamente pelos fiéis. Mas a fé no mundo invisível é muito viva. O Corão fala dos anjos; menciona igualmente os Djinns ou gênios, espécies de seres próximos aos espíritos que estão organizados em comunidades. Quanto aos anjos, a fé muçulmana os vê em diversas circunstâncias. O anjo Gabriel foi instrumento de revelação, trazendo da parte de Deus os textos corânicos a Mohammad, como havia feito anteriormente com os profetas precedentes. Da mesma forma, creem na existência dos dois anjos da guarda que o homem tem sempre consigo para anotar seus atos; o muçulmano os saúda à sua direita e à sua esquerda no fim de cada oração ritual.
Para o muçulmano, os Livros Sagrados (a Torah, os Salmos, o Evangelho – no singular –, o Corão, os de Adão, de Set, as folhas de Abraão) passam antes do profeta na lista dos artigos de fé; o profeta desempenha tão somente o papel de transmissor de um livro preexistente. A comunicação de “Livros” revelados aparece como o máximo das intervenções da graça divina em favor da humanidade, ou a transmissão de um texto preexistente, vindo do céu, sem que o profeta desempenhe a mínima função ativa na operação. O profeta não faz senão receber textos que repete (é um ditado).
O Corão contém tudo, a leitura dos outros não é capaz de trazer nada de novo. O livro desafia os seres humanos a produzirem uma única sura (capítulo) que possa ser igualada ao Livro Sagrado muçulmano.
As profissões de fé afirmam que o Corão é de origem divina e possui qualidades tais que nenhuma criatura foi ou será capaz de compor semelhantes.
O Corão anuncia o pecado imperdoável: “Deus não perdoa que lhe sejam dados sócios, ao passo que perdoa a quem Ele quer, os pecados menos graves que este. Quem atribui sócios a Deus cometeu um crime enorme” – (Corão 4, 48).
Há a crença no “decreto divino”, do bem e do mal, isto é, trata-se de crer que tudo foi decidido por Deus, que tudo vem d’Ele. Tudo o que o homem recebe da natureza vem de Deus.
Quando o Corão exorta a combater o inimigo, dirige-se a homens livres, capazes de aceitar ou recusar.
O Corão não reconhece em nenhum de seus adeptos um poder especial de interpretá-lo. O califa era o chefe político da comunidade muçulmana, mas não tinha nenhum poder religioso especial. No islã não existe nenhum magistério, como nas igrejas cristãs, por exemplo.
Os movimentos fundamentalistas proclamam que o Corão é a constituição do mundo. Referem-se assim aos mandamentos contidos nesse livro. Esses mandamentos existem, mas são poucos numerosos, dizem respeito a pontos precisos, evocam a atitude geral que se deve ter, por exemplo, o senso da justiça na questão das relações entre maridos e mulheres, tanto no casamento como no divórcio. Atualmente há grupos que reconhecem que o Corão necessita ser mais preciso.
O Corão contém versículos referentes ao véu das mulheres, porém, existem duas tradições a esse respeito. Uma exige que sejam visíveis exclusivamente os olhos da mulher núbil e que todo o resto do corpo permaneça escondido. A outra, deixa livres o rosto, as mãos e os pés.
A hégira
Mohammad foi rejeitado pelo seu clã em Meca e precisou encontrar outros protetores (caso contrário, consoante a lei do deserto, poderiam assassiná-lo facilmente e sem medo de represálias). Buscou primeiro em Taif, cidade de veraneio dos ricos de Meca, prosseguiu em meio aos nômades, mas sem êxito. Finalmente entendeu-se com os árabes pagãos de Medina (na época se chamava Yathreb e posteriormente passou a se chamar Medina, que em árabe significa “A Cidade”, para significar que se tornara a cidade do Profeta).
Uma política de fusão fez unir os emigrados vindos de Meca e os medinenses que haviam aderido. Cada mequense foi ligado por um pacto de fraternidade a um medinense, o que cimentou a comunidade em torno de Mohammad.
Cada uma dessas operações teve como efeito liquidar, uma após a outra, as três tribos judaicas de Medina, uma vez que os judeus preferiram a aliança com os mequenses àquela com os muçulmanos.
A guerra contra Meca foi feita para recuperar os bens que os muçulmanos haviam perdido pelo próprio fato de seu êxodo e da hostilidade dos pagãos.
É nesse período que a tradição islã coloca uma célebre viagem de Mohammad ao céu, destinada a dar-lhe coragem: o anjo Gabriel o teria conduzido a Jerusalém e depois ao sétimo céu, diante do trono de Deus. Aí teria ele recebido a ordem de orar ritualmente cinco vezes, diariamente.
Os principais dogmas
O patrimônio comum a todos os muçulmanos é constituído por um conjunto de dogmas e de leis, por uma fidelidade ao Corão e à memória de Mohammad, pelo orgulho de pertencer à comunidade muçulmana.
“Dize aos infiéis que se eles pararem, o que cometeram até aqui lhes será perdoado; mas se voltarem aos seus procedimentos, o costume de Deus a respeito dos povos antigos já se exerceu. Combatei-os até não haver mais tentações e até a religião inteira ser de Deus …” – Corão 8, 38-43.
No dogma islã, Moisés e Jesus ensinaram sobre Deus, sobre o destino humano, o pecado, a morte, os fins derradeiros, o céu e o inferno, exatamente as mesmas verdades, sendo que Mohammad não fez senão retornar a esse ensinamento. Para o muçulmano, todos os profetas ensinaram a mesma doutrina religiosa, ainda que pudesse ser diferente a legislação que Deus os encarregava de promulgar.
Toda uma parte do dogma muçulmano diz respeito às conturbações do fim do mundo, à ressurreição dos corpos e ao próprio juízo com a balança para pesar os atos, os livros que serão abertos, o veredito, e depois o paraíso para uns e o inferno para os outros.
A sociedade muçulmana está baseada em um certo número de valores aos quais os crentes estão visceralmente ligados: o homem foi criado para adorar e servir a Deus (Corão 51, 56).
Os homens são divididos em puros e impuros. Podem ser puros em si mesmos, mas impuros em consequência da não-observância das leis de purificação. Para os sunitas, os judeus e os cristãos são puros em si mesmos, mas são impuros porque não se purificaram. Daí resultam consequências para a licitude do alimento preparado por não muçulmanos. Os sunitas aceitam comer na casa de cristãos e judeus, desde que os pratos que lhe são apresentados só contenham alimentos puros. Entre os xiitas, isso é mais delicado e houve um tempo em que as escolas precisaram preparar alimentos separadamente. Mais recentemente permitiram carnes de animais abatidos em abatedouros por cristãos. O porco é impuro.
As cisões no islamismo
As cisões que persistem ainda hoje no islamismo não têm nada a ver com as questões de dogma, pois no islã este é extremamente simples e conta com o acordo de todos. São de origem política e dizem respeito ao califado, ou, às condições exigidas para ser califa, chefe da comunidade muçulmana. O grupo principal é o dos sunitas, ou gente da tradição, que aderiram a Moawiya (fundador da dinastia Omíada – 661-680) e em seguida aos califas que lhe sucederam. Para os sunitas, o califa devia ser escolhido entre os árabes coraixitas. Eles representam hoje cerca de noventa por cento do total de muçulmanos. Os que não admitiram a autoridade de Moawiya e se separaram deram origem a dois grupos, que também se subdividiram: os caregitas e os xiitas. Os caregitas eram muito poucos, seus descendentes ainda subsistem no Saara da Argélia (ao redor de Ghardaïa, nos oásis), na ilha de Djerba (Tunísia) e em Omã (sudeste da Arábia) e queriam que o califa fosse escolhido dentre os muçulmanos mais competentes, árabes ou não árabes. Os xiitas são os partidários de Ali. Para eles o califa deveria ter sido escolhido entre os descendentes diretos de Ali e de Fátima (filha de Mohammad). Cultivam a memória dos que deveriam ter governado o mundo muçulmano, embora nem todos concordem quanto ao número desses imanes, como são denominados (os que reconhecem doze imanes são os mais numerosos). O Irã tem sido governado por xiitas nos últimos tempos.
As ramificações dos xiitas são os duocedimanos (que reconhecem doze imanes) – estão principalmente no Irã, no Iraque, na África Oriental –, e os ismaelitas (que reconhecem sete imanes) – estão principalmente no Egito, na Índia, no Paquistão, na Síria e na África Oriental.
No Irã os xiitas duocedimanos tendem a insistir nas noções de pureza ritual e os observantes estritos foram, durante muito tempo, mais exigentes que os sunitas, recusando alimento preparado por não muçulmanos e considerando estes últimos como seres impuros, cujo contato promiscui.
Os quatro primeiros califas foram escolhidos por um corpo eleitoral restrito e a comunidade ratificou a escolha, prestando juramento de fidelidade ao eleito. A partir de Moawiya, o califado se tornou uma função hereditária, permanecendo patrimônio de uma determinada família. Hoje, como já dito, não há califado.
A Lei muçulmana
A Sharia, lei muçulmana, diz respeito às vestes femininas, amputação da mão do ladrão, proibição de bebidas alcóolicas, proibição de juros nos empréstimos, morte para o muçulmano que apostatar. Essa lei foi abandonada no mundo muçulmano, embora continuem a ser observados pelos fundamentalistas sauditas.
A base da lei é o Corão; ele exprime claramente um preceito, a obrigação é absoluta. O Corão é redigido em um estilo muito conciso, não entra em detalhes. As palavras e os exemplos de Mohammad é que têm servido para esclarecer a legislação. São escritas coletâneas de tradições como séries de textos justapostos e classificados segundo os assuntos. Tais textos podem variar de teor, vão desde as sentenças breves em duas ou três linhas até ao relato que ocupa várias páginas. Há uma lista de nomes das pessoas que transmitiram de uma à outra o respectivo texto: “fulano me contou, e outro havia contado a sicrano etc.”.
Os muçulmanos reconhecem uma lei moral geral que corresponde, grosso modo, à parte moral do Decálogo (do 4º ao 10º mandamento): não matar, não cometer adultério, não roubar, não cometer falso testemunho etc.
As obrigações de base da lei são conhecidas sob o nome dos cinco pilares do islã. Obrigam individualmente todos os muçulmanos em idade e nas condições exigidas a estarem sujeitos à lei: “O Enviado de Deus disse: o Islã está construído sobre cinco bases: o testemunho de que não existe divindade fora de Deus e que Mohammad é o Enviado de Deus – o cumprimento da oração ritual – o pagamento do imposto social (ou esmola legal) – a peregrinação a Meca – e o jejum de ramadã”.
O Jihâd é uma ação que os ocidentais não costumam entender corretamente. A palavra significa luta, a guerra santa, ou guerra legal, que tem ocupado um lugar relevante na história.
As confrarias
As confrarias são comuns no mundo muçulmano. A dos Qâdiriyya está ligada a um santo canonizado muçulmano, Abdal-Qâder al-Jilâni (1078-1167), um mestre ortodoxo, diretor de uma escola de direito. Ela hoje está controlada por um descendente denominado xeique supremo.
Outra, mais recente, é a confraria Tijâniyya, fundada por Ahmad al-Tijâni (1737-1815), um muçulmano africano. Os Ahmadiyya, contrariamente ao resto dos muçulmanos, admitem que Jesus foi realmente pregado na cruz, mas recuperou-se e partiu para a Caxemira (norte da Índia), onde morreu e foi enterrado. É um dos movimentos mais ativos de propaganda e de estudos que existem atualmente no mundo muçulmano.
Existem movimentos político-religiosos fortemente estruturados e voltados para a ação entre os muçulmanos, a exemplo do “Irmãos muçulmanos”, que começou no Egito e espalhou-se por diversos países.
A morte no islamismo
Os seguidores do islamismo devem crer no dia do julgamento final, quando haverá a ressurreição. A morte é uma transição entre mundos. A doutrina acredita que a existência humana continua após a morte na forma de ressurreição espiritual. Existe uma relação direta entre o comportamento do indivíduo na terra e a vida após a morte, que será de recompensas ou de repreensões correspondentes à conduta terrena. A morte, portanto, é um resultado natural da vida e é algo que ninguém pode negar.
Os muçulmanos acreditam que, ao morrer, uma pessoa entra em uma fase intermediária da vida entre a morte e a ressurreição, em que todos serão questionados pelos anjos. A ressurreição será precedida pelo fim do mundo. Alguns podem sofrer no inferno por pecados capitais dos quais não se arrependeram. O paraíso é o jardim eterno de prazeres físicos e deleites espirituais; o sofrimento estará ausente e os desejos do corpo serão satisfeitos. Palácios, fortuna, rios de vinho, leite e mel, fragrâncias agradáveis, vozes suaves, parceiros puros para relações íntimas; uma pessoa nunca se entediará. Os islâmicos que morrem em jihad (luta pela fé) vão direto para o paraíso, segundo a crença.
O Islã e o sofrimento
A perspectiva islâmica é que Deus faz com que coisas ruins aconteçam de modo a alcançar um bem maior. Deus aflige seus servos com sofrimento para moldá-los no tipo de pessoas que Ele quer que sejam. Por meio do sofrimento, os humanos podem desenvolver qualidades duradouras: perseverança e paciência diante de grande adversidade, e também humildade e mansidão. O sofrimento, na visão dos muçulmanos, é o motivo pelo qual as pessoas se voltem para Deus, paguem pelos seus pecados em vida e cultivem a paciência. Deus aflige os homens com testes e tribulações para que se voltem para Ele. No islamismo existe a crença no Paraíso e no inferno.
O islã e o cristianismo
O islã se afirma cada vez mais como o reformador do judaísmo e do cristianismo, depois de judeus e cristãos terem sido infiéis a Moisés e a Jesus.
Não são admitidas pelo islamismo as expressões antropomórficas ou poéticas que os livros da Bíblia empregam para falar de Deus. O próprio dogma do islã é claro, simples, apresentando as objeções e respondendo-lhes. Somente é levado em consideração o Corão, com exclusão de qualquer outro livro sagrado.
Os muçulmanos acusam o cristianismo de querer penetrar indevidamente no interior do mistério escondido de Deus, seja de divinizar um profeta como Jesus e de fazer dele um deus diante de Deus e opõe-se em nome da unicidade de Allah. Para o islã, Jesus é apenas um profeta, um homem superior encarregado de uma missão por Deus. O apóstolo São Paulo é muitas vezes destacado como o corruptor da fé, embora muitos ignorem Paulo.
Sobre o pecado de Adão, os muçulmanos creem que a natureza humana não é decaída. Adão desobedeceu a Deus, foi punido e arrependeu-se. Os descendentes do primeiro homem, no máximo, estão condenados a nascerem fora do paraíso em que seu pai foi criado; mas a natureza atual deles é idêntica à das origens.
Alguns profetas conservam uma certa personalidade, como Abraão, Moisés e Jesus. Não são somente exemplos destinados a provar a veracidade da Lei corânica da história, senão que apresentam alguns traços mais positivos. Moisés e Jesus receberam a Torah e o Evangelho, como Mohammad recebeu o Corão.
O Jesus muçulmano se insere em uma história religiosa do mundo tal como o Corão a descreve. Ou seja, Jesus não traz nada a mais, a nível dogmático que não tenha sido trazido pelos profetas precedentes, e nada mais do que traria Mohammad em seguida. Jesus é um profeta como os outros e ensinou o que os outros ensinaram. Segundo o Corão, Jesus é oferecido como exemplo ao povo de Israel.
O cristianismo, tal como vê o islã, é essencialmente a forma de religião única, eterna e imutável que Deus quis válida para os filhos de Israel em determinado momento da história. Foi pregado por Jesus, mas pouco a pouco seus discípulos afastaram-se da sua mensagem e Deus mandou Mohammad para reestabelecer a situação. Segundo a crença, um profeta fora enviado a cada povo, falando a mesma língua que eles.
Jesus é descrito pelo Corão sem nenhuma alusão ao contexto no qual viveu. Aparece fora do espaço e do tempo.
Os muçulmanos rejeitam os dogmas cristãos. Tome-se como exemplo o caso da crucificação ou não-crucificação de Cristo. Eu penso que relato de uma substituição por um sósia foi em razão de pensamentos de grupos primitivos, a exemplo dos gnósticos.
No islã, uma das funções de Jesus foi vir em apoio a Mohammad. O Corão afirma que Mohammad desconhecia tudo acerca dos relatos antigos bíblicos.
Trecho do Alcorão
Versículo do Trono
“Deus! Não existe divindade fora d’Ele!
O Vivente, o Subsistente.
Nem o sono toma conta d’Ele, nem a sonolência.
O que os céus e a terra contêm pertence a Ele.
Quem intercederá junto a Ele, a não ser com a
permissão d’Ele?
Ele sabe o que existe diante das suas criaturas e
atrás delas,
enquanto elas não compreendem nada da Sua
ciência,
a não ser o que Ele quer.
Seu trono abrange o céu e a terra,
cuja conservação não lhe pesa de modo algum.
Ele é o Altíssimo, o Magnifico.” – Corão 2, 255.