O apocaliptismo e o sofrimento

O apocaliptismo é uma designação para se referir a uma cosmovisão que caracterizou segmentos do judaísmo primitivo (200 a.C. a 200 d.C.), que se centrou na expectativa da intervenção iminente de Deus na história humana de uma maneira para salvar seu povo e punir seus inimigos. Os planos das coisas que devem acontecer no fim do mundo foram revelados aos apocaliptistas através de sonhos e visões, explicadas por um anjo interpretativo. Os escritores apocalípticos utilizaram pseudônimos de figuras judaicas proeminentes, como Adão, Moisés, Daniel, Baruque, Esdras e outros como estratégia de fornecer credenciais e, consequentemente, assegurar a aceitação dos escritos. A linguagem apocalíptica judaica é um gênero literário. Aparentemente, os apocalipses tinham um propósito, o de interpretar a história, ser a revelação de uma dimensão não evidente do mundo onde se vive, desvelando ou revelando o plano de Deus para o universo. O gênero se evidenciou no livro de Daniel, e teve como principal objetivo oferecer um propósito para o povo judeu, face ao sofrimento.
Os judeus apocaliptistas (a palavra tem origem em um termo grego, apocalypsis, que significa revelar) acreditavam que Deus tinha revelado a eles os segredos celestiais que podiam dar sentido às realidades terrenas. Acreditavam que Deus tinha mostrado por que seu povo justo estava sofrendo na Terra. Não era porque Deus o estivesse punindo. Exatamente o contrário, era porque os inimigos de Deus o estavam punindo. Deus tinha um adversário pessoal, um poder maligno que controlava as forças do mal, satanás. Ele não era arqui-inimigo de Deus. É com os apocaliptistas judeus que satanás assume um novo caráter e se torna o arqui-inimigo de Deus, um anjo caído expulso do céu e que produz destruição na Terra. Foram os antigos apocaliptistas judeus que inventaram o diabo judaico-cristão?
No cerne da resposta apocalíptica para o sofrimento está a ideia de que o Deus que criou este mundo vai transformá-lo. O mundo se tornou perverso; forças do mal o controlam e se tornarão cada vez mais poderosas até o final, quando Deus vai intervir, destruir o que é maldade e recriar o mundo como um paraíso para o seu povo. Para os apocaliptistas, tudo no mundo é dividido em dois campos: bem e mal, Deus e o diabo. Do lado de Deus estão os anjos bons; do lado do diabo, os demônios iníquos. Deus tem o poder da justeza e da vida; o diabo tem o poder do pecado e da morte.
O gênero apocalíptico começou a ficar popular aproximadamente na época da Revolta dos Macabeus (167 a.C.). Os apocalipses discutem as visões de um profeta que faz uma visita guiada pelos céus e vê as verdades celestes e os acontecimentos futuros, que dão sentido às realidades terrenas. O livro do Apocalipse tem uma sequência triunfal, assim como o livro hebraico de Daniel, que insiste em que depois de todas as catástrofes que se abatem sobre a Terra, Deus dará o comando final do mundo a seus escolhidos. Após as catástrofes terrenas, vem a batalha final, e a seguir um estado utópico no qual não haverá mais dor, tristeza ou sofrimento.
O apocalipticismo não passa de uma teodiceia, uma explicação para o motivo para haver dor e sofrimento neste mundo, se há um Deus bom e poderoso encarregado dele. A visão é concebida para dar esperança àquelas pessoas que experimentam um sofrimento que do contrário seria pesado demais para suportar, um sofrimento que parece não ser absolutamente redentor, que dilacera não apenas o corpo, mas a existência emocional e mental. O Apocalipse estava antecipando que o fim chegaria na própria época do autor do livro: “… Certamente venho sem demora” (Apocalipse 22, 20).
Para estudiosos do Novo Testamento, interpretar o livro do Apocalipse significa entender o que ele pode ter significado em seu próprio contexto. E existe algo nítido nesse contexto: seu autor, que chama a si mesmo de João, achava que as coisas estavam ruins na Terra e que só iriam piorar, até o fim, quando seria o inferno. O fluxo narrativo do livro de Apocalipse, anuncia que em breve Cristo voltará (Apocalipse 1, 1-7). Ele descreve uma visão simbólica de Cristo; é uma visão dominadora que demonstra nobreza, eternidade, apresentando-o como juiz e mostrando o seu poder. De sua boca sai uma “… espada afiada, com dois gumes …” (Hebreus 4, 12). Cristo diz para João escrever as coisas que viu “tanto as coisas presentes como as que deverão acontecer depois destas” (Apocalipse 1, 19). O que João teve foi uma visão de Cristo.
As “coisas presentes” se referem à situação de então das sete igrejas da Ásia Menor. Cada uma delas recebe uma carta de Cristo (Apocalipse, capítulos 2 e 3), na qual são indicados seus sucessos e fracassos e são exortadas a fazer o que é certo e permanecer fiéis até o final dos tempos. As coisas “que deverão acontecer depois destas” estão nos capítulos 4 a 22, nos quais o profeta tem diversas visões sobre o futuro curso da história da Terra. As visões apocalíticas do profeta começam com ele olhando para cima e vendo uma passagem no céu (o autor imagina o universo em três andares: acima, no céu, habita Deus). Ele é convidado a subir, e assim pode ver “… as coisas que devem acontecer depois destas” (Apocalipse 4, 1). De alguma forma, o profeta dispara pelo céu, atrás da porta, e se vê na sala do trono de Deus, onde o Todo Poderoso está sendo venerado e adorado por vinte e quatro anciãos (os doze patriarcas de Israel e os doze apóstolos?) e quatro criaturas vivas (as formas de vida na Terra?). O autor então vê na mão direita de Deus um rolo “selado com sete selos” (Apocalipse 5, 1). Vê “… no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um Cordeiro como tinha sido morto …” (Apocalipse 5, 6), a imagem de Cristo, identificado no Novo Testamento como “… o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo …” (João 1, 29). O cordeiro abre o rolo, rompendo seus selos, e cada vez que rompe um selo um conjunto de catástrofes atinge a terra: guerra, assassinato, morte e destruição. Com a abertura do sexto selo, acontecem levantes no céu e na terra. Seria esse o fim de todas as coisas? Ainda não. Mais catástrofes devem acontecer. Com o rompimento do sétimo selo se faz um grande silêncio, e depois surgem sete anjos que recebem sete trombetas (Apocalipse 8, 1-2). À medida que os anjos sopram suas trombetas, novas catástrofes se abatem. A Terra é queimada, as águas se transformam em sangue envenenado, o Sol, a Lua e as estrelas são apagados, feras selvagens se lançam sobre os habitantes da Terra, há violentas guerras e pestes. Juntamente com outras catástrofes se dá a aparição da besta, o anticristo, que assola ainda mais a Terra. Depois que a sétima trombeta é soprada, surgem mais sete anjos, cada um carregando uma enorme taça com o furor de Deus (Apocalipse 16, 1-2). Cada anjo verte a taça sobre a terra, levando a novas catástrofes, até chegar ao clímax, com a destruição da grande cidade que é a inimiga de Deus, “… Babilônia, a grande …” (Apocalipse 18, 2).
Finalmente, há uma última batalha, na qual Cristo surge dos céus em um cavalo branco (Apocalipse 19, 11), e combate o anticristo e seus exércitos, levando à sua destruição eterna em um lago de fogo (Apocalipse 19, 17-21). Segue-se então um período de mil anos de utopia na Terra, no qual o diabo está escondido no abismo para que não possa fazer o mal (Apocalipse 20, 1-6). Depois dos mil anos o diabo é libertado por um breve tempo, e então finalmente termina. Todos os mortos são erguidos e forçados a enfrentar o julgamento. Aqueles inscritos no livro da vida recebem recompensa eterna; aqueles cujos nomes estão nos outros livros são mandados para o castigo eterno. Então a morte é jogada no lago de fogo, que é o reino dos mortos (Apocalipse 20, 11-15). E surge o reino eterno. O céu e a terra são refeitos e uma cidade celeste, Jerusalém, desce dos céus, uma cidade com portões de pérola e ruas de ouro (Apocalipse 21, 9-27). Lá os redimidos vivem para sempre, uma abençoada existência de alegria e paz. O profeta conclui o livro indicando que Cristo está “vindo em breve” para que tudo isso aconteça (Apocalipse 22, 12). Ele estimula Cristo a fazê-lo: “Amém! Vem, Senhor Jesus” (Apocalipse 22, 20).
Como o Apocalipse descreve as catástrofes que acontecerão no final dos tempos e o Reino de Deus que surgirá, e como nada disso aconteceu, os leitores, ao longo dos séculos, interpretaram o livro como se referindo a algo que ainda acontecerá. Mas há no livro indícios de que o autor não está preocupado com o futuro, o século XXI, e sim se referindo simbolicamente ao que iria acontecer em sua própria época. Por exemplo, no capítulo 17 está escrito que um dos anjos com a taça do furor de Deus leva o profeta para o deserto para dar a ele uma visão do grande inimigo de Deus que aparecerá no final dos tempos. É a “Prostituta da Babilônia”. João vê uma mulher sentada em uma besta escarlate, que tem sete cabeças e dez chifres. A mulher está ornada de ouro, joias e pérolas. Ela seria uma com quem os “reis da Terra” “se prostituíram”. Leva na mão uma taça de ouro repleta de abominações e impurezas de suas prostituições. E na testa “estava escrito um nome, um mistério: “Babilônia, a Grande mãe das prostitutas e das abominações da Terra.” A mulher estaria “embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus” (Apocalipse 17, 6).
Segundo a Bíblia hebraica, a Babilônia era a maior inimiga de Deus e de seu povo, Israel. Mas qual cidade poderia ser inimiga de Deus para esse profeta, já que a Babilônia real e histórica, no século I, quando o profeta estava escrevendo o livro, já não era uma ameaça? As sete cabeças da besta simbolizam sete reis que governaram a cidade, mas também que eles representam os “sete montes sobre as quais a mulher está sentada” (Apocalipse 17, 9). Muito provavelmente seria Roma, cidade construída sobre sete colinas. Este devia ser o grande inimigo de Deus, que havia perseguido os cristãos, sob o comando de César Nero, o imperador, o inimigo contra o qual o livro do Apocalipse é escrito.