O Budismo, o Hinduísmo e o Cristianismo

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Considerações acerca do budismo – Diferenças entre o budismo e o hinduísmo, e entre o budismo e o cristianismo

Há diferença entre o budismo do Sul e o budismo do Norte: o Pequeno Veículo (Hinayãna) está presente em países como Sri Lanka, Tailândia, Birmânia (Mianmar), Laos ou Cambodja; o Grande Veículo (Mahayãna), no Extremo Oriente; e o Veículo do Diamante (Vajrayâna) – o budismo tibetano –, no Tibete e outras regiões do Himalaia.

Um elemento chave, constitutivo do grupo de seguidores, é a identificação de Buda como mestre iluminado, dedicado à divulgação de um conhecimento sobre a salvação humana completo que merece confiança por parte de seus seguidores: “Eu tomo refúgio no Buda”; “Eu tomo refúgio no dharma”; “Eu tomo refúgio na sangha”.

Todas as correntes budistas interpretam a existência em termos de transitoriedade e impermanência.

Outro princípio fundamental é o de que o ser humano é composto por um conjunto de cinco “grupos de agarramento” (skandhas), que se dividem em dois, identificados pela palavra namo-rupa. Rupa refere-se à base fisiológica da existência – a matéria formada pelos elementos terra, fogo, água e ar. Namo abrange as quatro faculdades ou processos sensoriais e mentais: a sensação ou emoção não específica (vedanã) causada pelo instrumentário sensorial em momento do contato com o mundo objetivo; percepções (samjnã) das qualidades presentes nos objetos encontrados no mundo objetivo; impressões (samskhãra) ou estruturas mentais resultantes das experiências de vidas passadas ou da vida atual, que direcionam as ações atuais; e reconhecimento ou consciência (vijnana) do mundo exterior.

A expressão anatta destaca a impermanência do sujeito devido à falta de uma instância no sentido de uma alma, ou seja, de uma entidade que não é atingida pelos processos transitórios e, portanto, persiste nas reencarnações como essencial imutável individual. Portanto, a doutrina de anatta tem o objetivo de conciliar as ideias de não-substancialidade do indivíduo e da continuidade do essencial imutável individual no decorrer das reencarnações.

As quatro nobres verdades, base da doutrina ensinada por Buda, salientam que: 1 – a vida é marcada pelo sofrimento; 2 – o sofrimento tem suas raízes em conceitos falsos e atitudes erradas; 3 – o sofrimento pode ser vencido sob a condição de que suas raízes sejam superadas; 4 – o método de superar a situação existencialmente precária consta no caminho óctuplo ensinado pelo Buda para alcançar o nirvana, objetivo soteriológico do budismo qualificado pela extinção das raízes do sofrimento e, portanto, pela ausência dele.

Segundo o budismo, um self cultivado pelo indivíduo nasce de um engano (avidya), determinado pelo hábito de mergulhar no fluxo permanente de atividades corporais, mentais, emocionais que o levam a perceber como portador autônomo de todas as experiências, sensações e conteúdos mentais. A ilusão de um self nasce e intensifica-se a partir de uma carência continuadamente frustrada no ser humano e de sua busca incessante por algo permanente e seguro que poderia determinar um preenchimento satisfatório. Agindo de maneira egocêntrica com o desejo de alcançar o que parece promissor e evitar o que é desagradável, o indivíduo torna-se vítima da lei do carma, responsável pela continuidade da existência em formas variáveis dentro do samsãra.

Enquanto o indivíduo se deixa dominar pela busca para sensações temporárias, continua a ser vítima de um mecanismo sutil, o apego (avidez), o que causa uma insatisfação constante.

O caminho óctuplo, a trilha espiritual praticada para se libertar do mecanismo da perpetuação do samsãra é composta por oito elementos, com base na sabedoria (pañña), moralidade (sila) e cultura mental (samadhi).

Os hábitos corretos para que a conduta moral se torne uma manifestação natural e espontânea de valores internalizados. A função de virtudes é dominar disposições negativas. Entre as virtudes encontram-se as qualidades que se desenvolvem à medida que as raízes do sofrimento, ou seja, a avareza, ódio e ignorância, são combatidas e substituídas por não-apego, benevolência e entendimento. Não-apego é definido como ausência do desejo egocêntrico que determina as ações.

O princípio da não-violência (ahimsa) não é apenas a ausência de algo, mas é praticado ativamente com base em sentimentos profundos de respeito por todos os seres vivos.

Assim, a compaixão é outro ideal dos praticantes budistas.

O budismo, protegido e promovido pela dinastia Maurya (324-187 a.C.), experimentou uma fase de prosperidade e de fundação de mosteiros em todas as regiões do continente indiano. Fatores como a distância entre essas sedes e o surgimento de líderes de opiniões locais em uma época ainda caracterizada pela memorização dos ensinamentos do Buda contribuíram para a diferenciação da doutrina segundo a preferência dos grupos, manifestas na diferenciação de interpretações.

O budismo ganhou seu perfil dogmático e organizacional à medida que compilou seu cânone conforme as decisões coletivas tomadas nos concílios em Rajagaha (em 483 a.C., alguns anos após a morte do Buda), em Vesali (383 a.C.) e em Pataliputta (252 a.C.). O primeiro cisma ocorreu devido a uma disputa sobre questões da disciplina monástica que separou os theravãdins (seguidores da doutrina dos mais velhos) de um grupo majoritário de reformadores, cuja superioridade numérica os autodesignou mahãsanghikas (integrantes da grande comunidade). No século I a.C. havia pelo menos dezoito escolas, porém, somente a theravãda sobreviveu.

Do ponto de vista da escola theravãda, a doutrina do Buda é basicamente um conjunto de instruções práticas em prol da superação imediata das condições do samsãra e da libertação do sofrimento.

O texto do Culamãlunkya Sutta, do Majjhima Nikãya afirma: “Certa ocasião, Buda estava no Bosque de Jeta, junto à cidade de Sarasvati. Um monge de nome Malunkya veio ter com ele, parecendo bastante preocupado. Ele se afligia com o fato de Buda jamais responder às seguintes questões, amplamente ventiladas pelos pensadores de sua época: – O mundo é finito ou infinito? – Corpo e espírito são uma coisa só ou duas coisas separadas? – O homem tem uma vida de além-túmulo? Malunkya, que gostava de filosofia, estava bastante aborrecido por Buda não tratar dessas questões e lhe disse: ‘Ó Perfeito! Se não responderdes a minhas dúvidas, deixarei a comunidade e voltarei à vida mundana’. Buda respondeu: ‘Malunkya: certa vez um homem foi ferido por uma seta envenenada. Os amigos correram a buscar um médico, mas o ferido disse que só consentiria que lhe extraíssem a seta e o tratassem depois de lhe explicarem quem atirou a seta, com que arco foi lançada, qual a sua forma. Que terá acontecido a ele? Certamente há de ter morrido antes de ver esclarecidas suas dúvidas. Malunkya: da mesma forma, respostas e perguntas acerca do caráter finito ou infinito do universo, da natureza, da alma, não nos libertam do sofrimento. Precisamos nos libertar do sofrimento nesta vida. Por isso, Malunkya, não te preocupes com as questões que não ensino. Preocupa-te com as que ensino, que são: a existência do sofrimento, a origem do sofrimento, a cessão do sofrimento e o caminho da sessão do sofrimento’.”

O alcance do nirvana exige uma disciplina sistemática idealmente praticada em um ambiente que garante o mínimo de interferência de fatores disfuncionais para a rotina espiritual.

O budismo theravãda propõe um realismo psicológico a partir da hipótese de que o sofrimento experimentado pelos seres é uma reflexão adequada da situação real da existência. Ao mesmo tempo, há a esperança de que a prática do caminho óctuplo, única trilha válida para os theravãdins, desvincule o adepto de seu estado precário existencial e o transforme em um ser iluminado. Se o caminho é percorrido com sucesso ou não, isso depende do carma de cada um e dos desafios encontrados na sua vida, conforme a lei universal da causa e efeito das ações individuais.

Os esforços do Buda para sensibilizar seus adeptos para o fato de que nada no mundo ao qual o ser humano se apega vale a pena baseiam-se na premissa de que tudo o que existe está vazio. Essa proposição ganhou uma qualidade diferente nos textos mahayãna, em que o adjetivo vazio foi transformado em “tudo é a vacuidade”. Essa reformulação muda o foco de objetos isolados e de seu destino comum da não-substancialidade para a realidade unificada subjacente aos objetos. Diversos textos associam a inacessibilidade conceitual da vacuidade como a falta de características, o não-dualismo e a não-multiplicidade.

O fato de que nada no mundo da descrição dos fenômenos têm substância e duração é visto como fonte de sofrimento. É o insight na vacuidade como realidade última atemporal e onipresente que acaba com o sofrimento. No theravãda, o nirvana é fruto de uma transformação gradual do praticante, o mahayãna salienta que o insight reside em um reconhecimento da vacuidade como a natureza autêntica do adepto. Essa natureza é dada como o Sol que sempre brilha, ou, em outras palavras, o ser humano já é essencialmente iluminado. Por isso, o sofrimento não é real, mas ilusório. Portanto, a prática do mahayãnista não requer um desenvolvimento do nirvana. Outra diferença fundamental entre o mahayãna do theravãda está na área da budologia. Para os theravãdins, Gautama era um homem submetido às mesmas leis e princípios cósmicos que qualquer outro ser vivo. Apenas trinta e duas faculdades fisiológicas e sensoriais extraordinárias qualificavam o mestre como um homem além do normal. A budologia do mahayãna considera a doutrina dos três corpos do Buda, que concebe Sidarta uma concretização no continuum espaço-tempo da última realidade impessoal. O Buda histórico era apenas um jogo do Buda supramundano, ou seja, um truque pedagógico, com o objetivo de alcançar os seres humanos em seu próprio nível para instruí-los. Isso vale para todos os Budas que vieram ao mundo, para os antecessores de Gautama no passado e para Maitreya, o esperado Buda do futuro.

Bodhisattva é no âmbito da mahayãna um ser suficientemente avançado para entrar imediatamente no nirvana, mas que desiste para se dedicar à libertação de todos os outros seres ignorantes e algemados no samsãra. Os bodhisattvas interferem ativamente na vida dos fiéis, uma vez que se dispõem a carregar o sofrimento alheio.

O Pequeno Veículo (hinayãna) remete a um remador solitário que se esforça para levar seu barco particular à outra margem do rio, onde não há mais sofrimento. No mahayãna e no theravãda, ambos levam em consideração a importância da observância de preceitos morais e do cultivo de virtudes no sentido da acumulação de boas qualidades necessárias para o alcance do nirvana.

A partir do século I, distinguem-se dois tipos de bodhisattvas. Os terrestres são seres humanos como milhões de outros, identificáveis por sua compaixão e disposição de se engajar para a salvação de outros, sem lamentar o fato de que, devido à suspensão de sua própria iluminação, eles tenham que passar por novas e novas reencarnações. Os bodhisattvas transcendentais realizam a sabedoria libertadora (prajña) mediante as chamadas seis perfeições (paramitas), mas não entram no nirvana estático. Eles estão livres de atributos materiais grosseiros e não são mais expostos às leis naturais (em fontes do mahayãna existem cerca de cinquenta bodhisattvas transcendentais mencionados).

O desenvolvimento das chamadas perfeições (paramita) variam quanto ao número das virtudes. Há listas com seis e com dez elementos. Encontram-se, portanto, virtudes como a generosidade (prajña), a paciência (ksãnti) e a sabedoria (prajña).

A partir do século VIII, em um período que mesclou momentos de expansão e de repressão, o budismo ganhou força indo para a Mongólia, Butão, Nepal e províncias do norte da Índia.

A ênfase do budismo tibetano na vida monástica é uma reminiscência do budismo primitivo, incluindo elementos do Bön, religião autóctone pré-budista cujas muitas divindades foram teologicamente degradadas e, em vários casos, instrumentalizadas como guardiãs do dharma.

O budismo tibetano apresenta-se como uma subespécie do budismo mahayãna, especificamente devido à sua profunda ética altruísta expressa pela veneração de bodhisattvas, e por fortes tendências filosóficas mahayãnistas, como a doutrina de vacuidade, que tende a relativizar a validade da realidade mundana.

A prática religiosa promove o afastamento do indivíduo de seu mundo imaginado, emancipando o adepto de seus laços com o mundo da aparência.

O budismo nas regiões da Ásia mantém as suas subdivisões geográficas e culturais, mas o budismo ocidental destaca-se por uma coexistência de muitas escolas de origens e características diferentes.

No ocidente há adesões ao budismo por reconhecimento do benefício cotidiano de uma das suas práticas, sem que esse interesse se articule como uma orientação preferencial na religião. Nesse contexto, é possível ser budista e, ao mesmo tempo, cristão ou muçulmano. A tendência é de se dedicar ao budismo de maneira transveicular.

 

Diferenças entre o budismo e o hinduísmo

O budismo, por muitos séculos, representou um desafio ideológico e político regional para o hinduísmo. Depois, passou da condição de movimento sectário, não mais limitado a regiões e ao patrocínio de governos locais, expandindo-se, influenciando uma civilização pan-asiática com valores, ideais e símbolos budistas.

Até o século III a.C., a relação entre o budismo e o bramanismo (então manifestação do hinduísmo) era cheia de tensões, relacionadas a turbulências socioeconômicas e culturais da época. No período de fundação do budismo, a Índia passava por um processo de urbanização, que repercutiu em questionamentos da tradicional hierarquia de castas até então considerada expressão perfeita da ordem cósmica no nível da sociedade humana.

No nível da elite de então, a filosofia, antes hermética em termos de conteúdo e linguagem, emancipou-se da retórica elitista e articulou-se de maneira mais exotérica em idiomas locais. Uma das expressões dessas tendências era o budismo.

Do ponto de vista dos brâmanes, orgulhosos de possuir a língua sagrada (o sânscrito), a porção nordeste da Índia, onde Buda atuava como líder religioso, não pertencia às áreas religiosamente predestinadas. Era encarada como território bárbaro, local de idiomas impuros, inclusive o magadhi, dialeto falado por Sidarta Gautama.

O nascimento e crescimento do movimento budista foi, portanto, uma forma de articulação emancipadora de uma região até então considerada decadente, o que aumentava as tensões relativas à ordem social tradicional.

Havia grupos de ascetas itinerantes (sramanas) e grupos de ascetas instalados em ãsramas, estabelecimentos que abrigavam os gurus e seus discípulos e ofereciam espaços sociais particulares para ensino e práticas religiosos.

Os aspectos de convergência característicos do budismo e do hinduísmo na época do Buda são a atitude pessimista diante do mundo; a ideia de ciclos existenciais e o desejo de superá-los; a teoria do carma; a disposição do adepto de receber orientação de um mestre; a atribuição de potencial que oferece a salvação ao indivíduo; o princípio de não-violência e o uso de métodos psicofisiológicos em prol da evolução espiritual.

Sidarta Gautama se esforça para se legitimar como mestre em um ambiente social ainda impressionado pela reputação e fama dos especialistas religiosos da casta dos brâmanes, tradicionalmente a única camada social autorizada a administrar o conhecimento sagrado.

Além das divergências internas, o budismo foi transplantado para regiões fora da sua terra de origem e teve de se adaptar linguística, doutrinária e simbolicamente às modalidades de novas culturas anfitriãs.

A forma mais simples de atitude inclusivista reside na incorporação tácita de elementos alheios, postura que vale especificamente para a fase inicial do budismo em relação a diversos elementos típicos do antigo hinduísmo (bramanismo). Entre eles, as ideias de carma e de samsãra, a busca metódica para a libertação, a opção por uma vida itinerante, a ênfase na ascese e na renúncia.

Um dos textos a tomar partido do conceito de ekayãna é o Sutra de Lótus, um dos mais famosos textos da literatura mahayãnista, que destaca em diferenciação ao ideal do arhat e sua busca para a salvação individual, a figura do bodhisattva e seu papel para a salvação de todos os seres das suas condições samsãricas.

Buda se colocou criticamente em relação à tradição dos Vedas, à fixação de um saber revelado e à justificativa suprema do sistema de castas como expressão da ordem universal inerente ao cosmo. Também não aceitou a certeza dos brâmanes de possuir o monopólio dos bens religiosos.

Conforme os raciocínios do filósofo budista Dharmakirti, pensador indiano da primeira metade do século VII, pode-se distinguir pelo menos três aspectos inter-relacionados da crítica do budismo à tradição védica e seus representantes na época de Buda. O primeiro aspecto é a crítica a respeito da fonte de conhecimento. Os brâmanes argumentavam que os Vedas representavam um saber verdadeiro porque se originavam de uma fonte eterna e imutável. A abordagem de Gautama é de que todas as facetas da existência são permeadas pelo princípio da impermanência. Esse conceito é incompatível com a pretensão dos brâmanes de representar um saber invariável e eternamente válido. O segundo aspecto da crítica budista aos Vedas e aos brâmanes diz respeito à utilidade, aos objetivos e ao volume do conhecimento. O argumento, nesse contexto, é o de que não importa se o conteúdo de um conhecimento é empiricamente adequado ou não, quando esse conhecimento se refere a fenômenos espiritualmente irrelevantes. A maior parte daquilo que os brâmanes qualificam como saber superior não teve valor para Buda. O terceiro aspecto refere-se à atitude do receptor de um conhecimento. O difusor de um conhecimento não pode estar relacionado apenas à reputação social deste ou a sofisticação do saber que ele apresenta corre o risco de aprofundar a própria ignorância.

O antigo sentimento de superioridade dos brâmanes tem suas raízes na consciência de um status especial por nascimento, não só por uma posição de destaque dentro da hierarquia das castas, mas também como consequência de uma maior participação na herança étnica dos autodenominados arianos (povos que imigraram para o continente indiano) em comparação com a população autóctone de tez escura denominada drávida.

Tanto o hinduísmo quanto o budismo enfatizam o caráter ilusório do mundo dos fenômenos. Comparado com a tradição hindu, porém, o Buda, negando uma entidade duradoura ou mesmo eterna, radicalizou o conceito de efemeridade fenomenológica. Consequentemente, há uma tensão entre as correntes do hinduísmo que não hesitam em atribuir qualidades positivas à realidade última e, com isso, a consciência humana plenamente realizada.

O budismo não apenas conta com seres sobre-humanos capazes de interferir no mundo humano, mas investiu energia e tempo para associá-los a um sistema de classificação que abrange “deuses altos” (devas), divindades menos envolvidas (asuras) e forças sobre-humanas “baixas”. Além disso, o panteão budista também é habitado por sambhogakãya-budas e bodhisattvas celestiais.

Indra é senhor do domínio celestial denominado trãyastrimsa, de onde chefia trinta e três outras divindades. Outra figura importante é Mãra, chefe dos demônios e encarnação do mal. Mãra tentou, através de uma série de ações, evitar a iluminação de Sidarta Gautama, para que não compartilhasse seu conhecimento com outros seres.

As forças sobre-humanas “baixas” ou “menores” mais citadas são os nãgas e os yaksas. Os nãgas são seres semelhantes a serpentes. De acordo com a tradição popular, vivem junto às raízes das árvores e são associados ao caos e à fertilidade. Sua domesticação pelo budismo é expressa pelo fato de que um nãga protegeu o Buda durante sua última meditação antes da iluminação. Os yaksas são espíritos de lugares afastados, onde seres humanos, inclusive monges e monjas que procuram o silêncio para meditar, são maltratados. Desempenham papel positivo em nome do dharma.

Nos textos do Abidharma encontra-se a discriminação vertical, em trinta e um níveis de existência, subdivididos em três categorias principais. O nível mais baixo é representado pela sexualidade (kãmaloka); a esfera da materialidade sutil representa o nível médio (rupadhãtu), que é vizinho da esfera sem formas. Qualquer ser pode nascer em um desses níveis. O kãmaloka abriga destinos infelizes (formas de vidas desagradáveis, inclusive existências em um dos oito infernos como espíritos famintos ou divindades ciumentas, os asuras) e destinos felizes. A categoria de existência diz respeito à vida de uma divindade (deva) em um dos seis céus do mundo sensorial (são uma hierarquia de céus). Acima de kãmaloka existe o mundo mais sutil, estruturado em dezesseis, dezessete ou dezoito esferas celestiais habitadas por divindades superiores chamadas brahmãs. São seres conscientes que possuem apenas dois sentidos, audição e visão. No último nível residem as divindades altamente avançadas em termos de sabedoria. Possuem apenas consciência, sem atividade sensorial. Estão em suas últimas reencarnações, ou seja, nunca mais voltarão às camadas inferiores de vida, uma vez que já são iluminados ou alcançarão o nirvana antes de morrer.

O hinduísmo posiciona as divindades mais altas, particularmente Brahma, Vishnu e Shiva em um patamar de imunidade às condições do samsãra. O budismo, por sua vez, destaca que todas as esferas da existência, inclusive os mais elevados céus, representam camadas dentro do samsãra, esferas em que, potencialmente, qualquer ser humano pode ser reencarnado, dependente do seu carma individual. Isso implica que a totalidade das divindades é caracterizada por qualidades negativas universais, como a falta de substância e a mortalidade.

Alguns textos enfatizam que o Buda não deve ser venerado, mas sim o dharma deve ser o foco da prática.

A forma mais frequente de homenagear ritualmente o Buda é a chamada Buddha-pujã. Essa cerimônia pode ser realizada em casa ou em um santuário. O rito envolve geralmente uma espécie de oferenda para uma imagem de Buda em forma de ingredientes como uma flor ou uma vela, ou comida.

Na tradição da Terra Pura, Amida é uma imagem principal de veneração.

 

Diferenças entre o budismo e o cristianismo

Um assunto recorrente no debate entre budismo e cristianismo reside na questão da legitimidade da reinvindicação cristã de possuir a verdade maior. Nesse contexto, pode-se distinguir, grosso modo, três linhas de argumentação. A primeira linha acusa o cristianismo de inflexibilidade e afirma que tal atitude nasce dos tratamentos dos próprios dogmas como alvo invariável e universalmente válido.  Uma segunda linha retoma a questão da verificação racional dos conhecimentos de salvação com o objetivo de comprovar a superioridade do budismo em relação a religiões que se caracterizam como ensinamento que ganha relevância prática para o indivíduo, verificando se ela é verdadeira conforme as suas próprias experiências, que é o caso do budismo. A terceira linha de argumentação lembra a parábola da jangada, que pode ser abandonada assim que a outra margem é alcançada, analogia que pretende sensibilizar para a relatividade básica de todas as religiões históricas.

A absolutização da Bíblia negligencia o fato de que tal livro é uma obra humana, muitas vezes alterada e seletivamente interpretada. Os cristãos consideram a Bíblia como palavra infalível de Deus, o que exige a obediência cega.

Um segundo bloco temático relevante para a relação entre o budismo e o cristianismo surge na discussão sobre o status e o significado de Jesus Cristo. Os argumentos apresentados sobre essa questão tendem a oscilar entre as simpatias pelo Jesus histórico e a rejeição do dogma de Cristo. Na medida em que Jesus é tratado como fundador de uma religião que atua historicamente, é, em regra, considerado um mestre, que em sua atividade concreta e ética apresenta semelhanças com Buda.

Tanto Buda como Jesus foram mestres itinerantes; nenhum dos dois tinha família e ambos passaram a vida na pobreza.

Uma vez que o budismo rejeita (…) a ideia de que há um Deus, um homem em cima ou um chefe que está controlando aas coisas, a fé cristã em um Deus pessoal marca um ponto crucial para os debates entre representantes das duas religiões.

A doutrina dos três corpos é uma teoria budológica, segundo a qual a última realidade não-substancial e impessoal (dharmakãya) se manifesta em dois planos concretos, os Budas sutis, com seus corpos de glória, e o Buda histórico, cuja forma cultural é grosseira (nirmanakãya).

Abe, filósofo da escola de Kyoto, vê na concepção cristológica de kenosis um paralelo à sua construção filosófica, e faz um comparativo com base na afirmativa, “ele se rebaixou”, usada por Paulo em sua carta aos Filipenses (2, 5-8): “Tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Jesus Cristo: Ele, de condição divina, não defendeu ciosamente o posto que o igualava a Deus. Mas rebaixou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens. Comportando-se como um homem, humilhou-se ainda mais obedecendo até a morte, a morte na cruz”. Com base nessa citação, Abe redefiniu o Deus cristão em conceitos ontológicos do budismo mahayãna. Para ele, Deus só é o verdadeiro Deus porque Ele, em seu processo de autoesvaziamento, renuncia a uma existência concluída, identificando-se em seu amor com todos, inclusive com os pecados humanos.

Diretamente vinculado à discussão realizada pelos budistas sobre a ideia do Deus Criador está o chamado problema da teodiceia, ou seja, a necessidade da justificativa racional de um Deus benévolo face ao sofrimento do mundo.

Mais difícil de entender, para os budistas, é o fato de um Deus supostamente todo-poderoso ou sábio ter criado um mundo obviamente imperfeito. Por isso, os cristãos se contradizem, afirmando que a criação é organizada de forma perfeita. Se essa ordem realmente existe, seu funcionamento é violento.

Quanto ao budismo theravãda existem contrastes claros entre o budismo e o cristianismo, como a questão de como a salvação religiosa deverá ser realizada e até que ponto o indivíduo que busca a salvação desempenha um papel ativo. O caminho nobre óctuplo ao nirvana, identificado por Buda, atribui ao indivíduo envolvido em seu desconhecimento a responsabilidade plena pela própria salvação. O cristianismo, por sua vez, prega a graça de Deus e duvida de que o ser humano, sujeito ao pecado original, tenha alguma competência na salvação humana.

Há divergências quanto aos raciocínios sobre o sofrimento. Os budistas entendem o sofrimento como algo que define a existência negativamente e, por isso, deve ser superado o mais rapidamente possível. De acordo com os cristãos, o sofrimento, mesmo que seja desagradável e não atraente, é uma benção para crentes, uma vez que Deus está presente nessa sensação e interfere na vida do sofredor. A existência do sofrimento e a forma como o ser humano reage a ele é o que importa, tanto para o budismo quanto para o cristianismo.

Há referências a trechos do Antigo Testamento que comprovam a suposta crueldade do cristianismo e a sua contribuição para a desarmonia no mundo. O sacrifício dos animais, por exemplo, Buda rejeita. Acusa-se que o cristianismo sancionou a violência, citando-se trechos da Bíblia nos quais Deus se apresentou como “Senhor da Guerra” (Êxodo 15, 3 e Isaias 42, 13), “Aniquilador dos Povos”, “Devastador de Fortes e Ruas” e “Destruidor das Cidades” (Sofonias 3,6).

Isso é contextualizado em situações históricas concretas moldadas por condições sociais, forças políticas e interesses econômicos, além de outros fatores que sobrepõem a aspirações espirituais e interferem na relação entre as religiões e na sua competição por legitimidade, status e influência.

As divergências profundas nas relações entre o budismo e o cristianismo começaram a partir do início do século XVII no Japão e, por volta da passagem dos séculos XIX-XX, no Ceilão/ Sri Lanka.