O inferno

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O inferno

“A palavra demônio não implica a ideia de espírito mau, senão na sua acepção moderna, porquanto o termo grego daïmon, donde ela derivou, significa gênio, inteligência e se aplicava aos seres incorpóreos, bons ou maus, indistintamente. Por demônios, segundo a acepção vulgar da palavra, se entendem seres essencialmente malfazejos. (…) Como todas as coisas, eles teriam sido criados por Deus. (…) Satanás é evidentemente a personificação do mal sob forma alegórica, visto não se poder admitir que exista um ser mau a lutar, como de potência a potência, com a Divindade e cuja única preocupação consistisse em lhe contrariar os desígnios. (…) Como precisa de figuras e imagens que lhe impressionem a imaginação, o homem pintou os seres incorpóreos sob uma forma material, com atributos que lembram as qualidades ou os defeitos humanos. (…) os anjos, os puros espíritos, por uma figura radiosa, de asas brancas, emblema da pureza; e Satanás com chifres, garras e os atributos da animalidade, emblema das paixões vis.”

O Livro dos Espíritos – Alan Kardec

 

Durante a Idade Média, faziam-se descrições especialmente vívidas dos tormentos do inferno, porém as origens desse conceito se encontram na história antiga.

A palavra nórdica helviti (punição da deusa da morte), da qual deriva a palavra inglesa hell (inferno), é uma tradução da palavra Gehenna do Novo Testamento, que significa, em hebraico, Vale de Hinom. Nesse vale, ao sul de Jerusalém, faziam-se sacrifícios a deuses. O local, depois, ficou reservado para depósito do lixo proveniente da cidade de Jerusalém. Juntamente com o lixo vinham cadáveres de mendigos encontrados mortos nas ruas, ou de criminosos e ladrões mortos quando cometiam delito. Esses corpos, às vezes, eram atirados onde havia fogo. Por essas razões, o vale se tornou desprezível e amaldiçoado pelos judeus e símbolo de terror, da abominação e do asco. Ser atirado à Gehenna era sinônimo de desprezo ao morto. Por ser um crematório do lixo de Jerusalém, o fogo era constante naquela área. Daí, na época de Jesus, o nome Gehenna provavelmente lembrar as chamas eternas do castigo. Com base nas citações do Novo Testamento, é impossível dizer se esse fogo é uma tortura eterna ou o esquecimento, a anulação.

A simbologia do fogo se encontra em quase todas as formas observadas pelos estudiosos do tema: círculos de fogo, lagos e mares de fogo, anéis de chamas, carvões ígneos, muros e fossos de fogo, carrancas de monstros lança-chamas, almas sob forma de centelhas, rios, vales e montanhas de fogo.

Ernest Wallis Budge, arqueólogo britânico que comandou durante anos escavações no Egito, Sudão e Mesopotâmia (1857-1934), destacou as características da herança infernal: “Em todos os livros sobre o outro mundo encontramos poços de fogo, abismos de trevas, correntes de água fervente, exalações fétidas, serpentes ardentes, monstros terríveis e criaturas com cabeças de animais, seres cruéis e assassinos de diferentes aspectos”.

Para os babilônios, na descida aos infernos de Ur-Nammu, príncipe de Ur (a epopeia de Gilgamesh), julgado pelo rei dos infernos, Nergal, é feita uma alusão a um fogo, há um rio próximo de uma montanha e o outro mundo está coberto de trevas. Para o herói Gilgamesh, que não obteve a imortalidade, os deuses concedem um lugar especial nos infernos. Por outro lado, Enkidu, o amigo de Gilgamesh, visita os infernos antes de morrer e deles apresenta uma descrição mais exata. É o reino do pós e das trevas, uma terra para onde se desce e se vai quando é colhido nas redes dos deuses, uma prisão.

O inferno egípcio era particularmente impressionante e refinado. Era uma região imensa com muralhas e portas, pântanos lamacentos e lagos de fogo. A geografia imaginária do além egípcio foi tão longe que mapas do outro mundo foram encontrados sobre certos sarcófagos. Nesse inferno, os castigos eram fartos e severos: enclausuramento e castigos pelo fogo.

Há um conjunto de textos elaborados na Palestina e no Egito antigos que enriqueceu as concepções e as representações do além. A maior parte desses textos não foi admitida pelas diversas igrejas oficiais entre os documentos ditos autênticos da doutrina da fé. São textos chamados apócrifos pela Igreja cristã. O Livro de Enoc, por exemplo, do qual a versão mais completa que se tem é uma versão etíope feita a partir do grego, foi composto nos séculos II ao I a.C., época em que começou a surgir a literatura apocalíptica (170 a.C.). Enoc, guiado pelos anjos, é levado a um lugar cujos habitantes são como um fogo ardente, e depois à morada da tempestade, do raio e das águas da vida. “E cheguei a um rio de fogo, cujo fogo corre como água (…) e me deparei com uma grande escuridão (…), vi as montanhas de trevas … e a embocadura do abismo.” Então Enoc chega ao poço do inferno, um abismo profundo com colunas de fogo. Havia quatro cavidades que continham quatro categorias de mortos classificados segundo a inocência ou a culpabilidade de suas almas e segundo os sofrimentos que experimentaram ou não sobre a terra.

As descidas aos infernos que a Antiguidade grega e romana trouxe algo ao imaginário cristão do além. Orfeu, Pólux, Teseu, Hércules foram alguns que desceram à morada das sombras.

As crenças judaicas testemunhadas no Antigo Testamento, o sheól hebreu, traz similaridades com o arallû, inferno assírio e do Hades grego. Da paisagem do sheól há dois elementos encontrados no inferno, a montanha do tormento e o rio. Se o sheól é assustador, como um lugar de tortura, observa-se nele três castigos especiais: o leito de vermes, a sede e o fogo.

Cristãos, muçulmanos e judeus conseguiram acreditar, ao mesmo tempo, em um Deus onipotente e em um diabo autônomo. Ora, ou se acredita em um Deus onipotente ou em duas forças opostas, nenhuma das quais é onipotente.

O cristão típico acredita no Deus monoteísta, mas também no diabo dualista (inferno, o reino dos maus), em santos politeístas e fantasmas animistas. É o sincretismo (ou o humanismo disfarçando-se?). O demônio somente se revestiu de forma antropomórfica e individualizada a partir do momento em que o homem criou “um deus pessoal vivente”. Era preciso inventar um responsável para explicar a crueldade, os erros e a injustiça por demais evidente daquele a quem se atribuía a perfeição, a misericórdia e a bondade absolutas. Caim e Abel foram os opostos. Um símbolo cedeu à perversa imaginação humana e logo tomou a forma do diabólico, o anjo caído (seria a queda o desejo de adquirir conhecimento?).

Crer no inferno – lugar de castigos eternos – supõe esclarecidas relações entre a alma e o corpo. Desde bem cedo, a doutrina da Igreja cristã foi que, no momento da morte, a alma imortal deixava o corpo e só se reencontrariam no fim dos tempos, durante a ressurreição dos corpos. A crença é relativa quando se pensa que nem tudo é decidido com a morte.

Dessa forma, a religião prevê uma descrição completa do mundo e oferece um contrato bem definido, com objetivos predeterminados. “Deus existe. Ele nos disse que nos comportássemos de certas maneiras. Se você obedecer a Deus, será admitido no céu. Se Lhe desobedecer, queimará no inferno.” A simples clareza desse contrato permite à sociedade definir normas e valores comuns que regulam o comportamento humano.

Os católicos ortodoxos seguem a indicação de um antigo padre da igreja, Orígenes, que falou da “redenção de todas as coisas” (apocatástase), ou seja, todas as pessoas serão salvas no final, até mesmo satanás e seus anjos. Essa doutrina foi criticada num concílio da Igreja Católica em 553, mas trazida novamente à tona por vários teólogos ortodoxos contemporâneos e não foi tachada de herética.

Na Bíblia lê-se que há dois tipos de julgamentos: um pela água (Gênesis 7), que prenunciou o batismo pelo qual se é lavado de todos os pecados (1 Pedro 3); e o outro, posterior, pelo fogo, quando Deus virá para o julgamento (Salmos 3).

Depois do juízo final, haverá dois grupos de homens por toda a eternidade: os eleitos e os danados. O destino deles será determinado por sua conduta durante a vida: a fé e as boas obras decidirão a salvação; a impiedade e os pecados criminais conduzirão ao inferno.

 

O inferno no livro Comédia, do poeta Dante Alighieri

Ilustração de Sandro Botticelli para o Inferno

No século XIV, quando Dante escreveu A Divina Comédia, “comédia” era uma história que começava mal e terminava bem. A história é da conversão de um pecador ao caminho de Deus.

 

O escritor é o protagonista, o próprio Dante. No poema ele descreve a viagem que faz ao inferno, ao purgatório e ao paraíso. Ela dura sete dias e antecede a Semana Santa. Dante começa contando que estava perdido em uma selva escura, dos vícios, dos pecados, ameaçado pela avareza, pela luxúria e pelo orgulho. Aparece Virgílio, autor dos tempos de Júlio César, que viveu de 70 a 19 a.C., foi um dos maiores poetas da Antiguidade e escreveu o clássico Eneida. Dante era um admirador profundo da poética de Virgílio. O escritor romano, na obra, vivia no limbo, pois era pagão e não fora salvo. Virgílio disse que ele fora enviado por Beatriz, a dama angélica, para salvar Dante e levá-lo para os reinos a fim de se purificar. Beatriz era Bice, uma menina de nove anos, uma visão de Dante, um anjo que viera para salvá-lo tempos atrás e tornou-se uma paixão.

A viagem é uma figura espiritual da alma humana. Dante passa pelo mal e pelo sofrimento, no inferno; sobe ao purgatório onde se purifica e chega ao paraíso, lugar em que entra em contato com as essências celestes. Por fim, Beatriz o entrega a São Bernardo, que pede à Virgem Maria que ele tenha a visão beatífica de Deus.

Dante, um cristão, diz que a realidade terrena é uma sombra da verdadeira realidade, a eternidade. O inferno, o purgatório e o paraíso são as verdades realizadas.

Virgílio e Beatriz são os guias seguros durante a viagem, visto que há falta de governantes capazes.

Para o poeta, o inferno está abaixo de Jerusalém. O purgatório também está na Terra. O inferno é uma enorme fossa feita pelo corpo de Lúcifer quando foi lançado do céu, por Deus. A terra que caiu para fora do buraco, quando Lúcifer se chocou, formou uma montanha e o purgatório.

O inferno é formado por nove círculos (a imagem descrita por Dante foi baseada na cultura medieval, para a qual o universo era formado por diversos círculos concêntricos). Os nove círculos do inferno estão associados aos pecados cometidos, sendo o último o de maior gravidade: primeiro círculo, o Limbo (virtuosos pagãos); segundo círculo, Vale dos Ventos (luxúria); terceiro círculo, Lago de Lama (gula); quarto círculo, Colinas de Rocha (ganância); quinto círculo, Rio Estige (ira); sexto círculo, Cemitério de Fogo (heresia); sétimo círculo, Vale do Flegetonte (violência); oitavo círculo, o Malebolge (fraude); nono círculo: lago Cocite (traição).

Lúcifer é a inversão de Deus e mora nas profundezas do inferno. Ele tem três rostos, um vermelho, o ódio; um amarelo, a impotência; e um negro, a ignorância. A figura mastiga a cabeça de Judas, o traidor do Cristo, e com as unhas risca o seu corpo. O demônio tem três asas que nascem abaixo das cabeças. Elas são de morcego, peludas, e golpeiam continuadamente. Ao baterem, produzem um frio que congela o rio do inferno.

Para o poeta florentino, o castigo era inversamente proporcional aos pecados. Assim, os “mornos” haviam sido, em vida, os indiferentes; no inferno, eles corriam sem parar, uma vez que haviam cometido pecados levianos. Eram desprezíveis e não merecedores de castigos severos. Eram os anjos que não tomaram partido quando Lúcifer se rebelou contra Deus.

Nos primeiros círculos do inferno, havia nuvens de mosquitos que picavam os rostos deles e o sangue que escorria pelo chão era coletado por vermes rastejantes.

Em outro círculo, o dos gulosos, não havia comida e os pecadores viviam em um mundo barrento e fétido.

No inferno mais baixo, o último, estavam os que haviam cometido violência. Para se chegar lá era necessário passar por muros – uma muralha cheia de demônios –, para então alcançar Dite (a cidade de Dite – em italiano, La città infuoccata di Dite). Os orgulhosos estavam enterrados ali, num lago lodoso. O inferno é um estado radical de sofrimento, de solidão e de profunda tristeza.

Para Dante, no juízo final o castigo permaneceria mais intensificado e a dor aumentaria. O inferno era a justiça de Deus, embora pudesse parecer cruel. O inferno era vontade de Deus.

Mais abaixo, estavam as almas que haviam cometido violência (contra o próximo, contra si mesmos ou contra Deus). Nesses infernos baixos havia poços de sangue com almas imersas, além de águias e demônios com garras que causavam dor.

O pior crime para Dante era a fraude: os falsários, os mentirosos, os aduladores, os hipócritas e os traidores. Cada tipo ficava em seus buracos infernais. Os aduladores estavam em um, atolados em excrementos. Os papas ficavam em outro lugar, separados, queimando numa fornalha de fogo.

Nos infernos, Dante encontrava personagens vivos, da vida real, e mortos de diversas épocas; cruzava com amigos e conhecidos, figuras públicas ou do universo pessoal do autor, e debatia sobre os mais variados temas.

Depois disso, Dante sai do último estágio do inferno pelos pés de Lúcifer e entra no purgatório, continuando a sua viagem.

Até os dias de hoje carregamos no imaginário o inferno, dos tempos do medievo, em que foi definitivamente criado e descrito. Vejamos:

 

O inferno de Alberico, um homem comum

Alberico de Settefrati, nascido por volta de 1100, tivera uma visão durante uma doença em que permaneceu dias em coma, quando tinha 10 anos. Após ingressar no mosteiro beneditino de Monte Cassino, narrou sua visão.

São Pedro e dois anjos acompanham Alberico, que vê então um vale gelado onde são torturados os adúlteros, os incestuosos e outros fornicadores e luxuriosos. Segue por um outro vale repleto de arbustos espinhosos, onde se encontram suspensas pelos mamilos sugados por serpentes as mulheres que se recusaram a amamentar os bebês e onde queimam, penduradas pelos cabelos, as mulheres adúlteras. Aparece então uma escada de ferro com degraus de fogo, ao pé da qual se encontra um tanque cheio de visco fervente: por ela sobem e descem os homens que tiveram relações sexuais com sua mulher durante os dias em que o ato sexual é proibido. Segue um forno com chamas sulfurosas, onde se consomem os senhores que trataram seus súditos não como senhores, mas como tiranos, e as mulheres que praticaram o infanticídio e o aborto.

 Depois desse forno se apresenta um lago de fogo semelhante a sangue. São ali jogados os homicidas mortos impenitentes, depois de terem carregado em seus pescoços durante três anos a imagem de suas vítimas. Em um imenso tanque ao lado, cheio de bronze, estanho, chumbo, enxofre e resina ferventes, queimam, por períodos que vão de três a oitenta anos, os bispos, patronos e responsáveis por igrejas que deixaram que padres perjúrios, adúlteros ou excomungados realizassem seu ministério. Alberico é em seguida conduzido para perto do inferno, um poço tomado de horríveis trevas, de onde saem odores fétidos, gritos e gemidos. Perto do inferno encontra-se um enorme dragão acorrentado, cuja boca de fogo devorava como se fossem moscas multidões de almas.

A espessura das trevas não deixa distinguir se essas almas estavam indo para as trevas ou para o próprio inferno. Os guias dizem a Alberico que ali se encontram Judas, Caifás, Herodes e os pecadores condenados sem julgamento. Em um outro vale os sacrílegos são queimados em um lago de fogo, os simoníacos em um poço de onde as chamas sobem e descem. Em um outro lugar horrível, tenebroso, malcheiroso e repletas de chamas crepitantes, serpentes, dragões, gritos estridentes e gemidos horríveis, são purgadas as almas daqueles que abandonaram o estado monástico, não fizeram penitência, cometeram o perjúrio, o adultério, o sacrilégio, o falso testemunho e outros crimes. São purgados ali na proporção de seus pecados.

 Em um grande lago escuro cheio de água sulfurosa, de serpentes e dragões, demônios batiam com serpentes na boca, no rosto e na cabeça de uma multidão de testemunhas falsas. Perto dali dois demônios com forma de cão e de leão exalavam de suas bocas um bafo escaldante que arremessava em toda espécie de torturas as almas que passavam ao alcance deles. Surge um grande pássaro carregando um monge velho e pequeno sobre suas asas, deixa-o cair nas trevas do poço do inferno, onde é imediatamente cercado por demônios, mas o pássaro retorna e o arranca deles.

Nos lugares de castigo Alberico viu ladrões e saqueadores acorrentados nus, sem poderem ficar de pé, com correntes de fogo atadas ao pescoço, às mãos e aos pés. Viu um grande rio de fogo sair do inferno, e por cima desse rio uma ponte de ferro alargando-se quando nela passavam, fácil e rapidamente, as almas de justos, e estreitando-se até ter apenas a largura de um fio quando nela passavam pecadores que caíam no rio e ali permaneciam até que, purgados e assados como carne, pudessem enfim atravessar a ponte. Esse rio e essa ponte era o purgatório. Por fim, ele vê um campo tão imenso que seriam necessários três dias e três noites para atravessá-lo, e repleto de espinhos tão largos que os pés devem caminhar sobre eles. Nesse campo havia um dragão gigantesco montado por um diabo com aparência de um cavaleiro que segurava em sua mão uma grande serpente. Este diabo perseguia qualquer alma que caísse nesse campo e lhe batia com sua serpente. Quando a alma tivesse corrido o suficiente para se ver livre de seus pecados, a corrida tornava-se mais leve e ela podia escapar.