O purgatório

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Até o século XII, a palavra purgatorium não existia. Portanto, o próprio purgatório não existia.

Quando ele se instala na crença da cristandade ocidental, entre aproximadamente 1150 e 1250, é um além intermediário onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada pelos sufrágios – a ajuda espiritual – dos vivos.

A doutrina cristã do purgatório só foi estabelecida no século XVI pelo Concílio de Trento.

Para a Igreja, é um instrumento de poder. Ela afirma seu direito sobre as almas do purgatório como membros da Igreja militante, priorizando o foro eclesiástico em detrimento do foro divino.

A existência de um purgatório baseia-se na concepção de um julgamento dos mortos, mas as modalidades desse julgamento que compreende a existência de um purgatório são muito originais. É um duplo julgamento: o primeiro no momento da morte, o segundo no fim dos tempos. E é instituído, nesse intervalo do destino, um procedimento judiciário complexo de mitigação das penas, de encurtamento dessas penas em função de diversos fatores.

O purgatório é também um intervalo propriamente espacial que desliza e se alarga entre o paraíso e o inferno.  O purgatório substitui os pré-paraísos do refrigerium, lugar de descanso imaginado nos primeiros tempos do cristianismo, e do seio de Abraão, caracterizado pela história de Lázaro e do rico mau no Novo Testamento (Lucas 16, 19-26).

A palavra purgatório (purgatorium), e, portanto, o lugar, nasceu no esforço do pensamento religioso para atribuir à purgação depois da morte um lugar e individualizar, espacialmente, o processo de purgação no além.

O Papa Inocêncio III (1198-1216) em carta ao arcebispo de Lyon em 1202, acolheu a existência de cinco lugares onde moram as almas humanas. O lugar supremo é aquele dos supremamente bons, o lugar ínfimo aquele dos supremamente maus e o lugar do meio para aqueles que são bons e maus: entre o lugar supremo e o lugar do meio existe um lugar para os medianamente bons; entre o lugar do meio e o lugar ínfimo, há um lugar para os medianamente maus. O lugar supremo é o céu, onde estão os bens aventurados. O ínfimo é o inferno, onde estão os danados. O do meio é o mundo, onde estão os justos e os pecadores. Entre o supremo e o médio há o paraíso terrestre. Entre o médio e o ínfimo há o purgatório, onde são punidos aqueles que não fizeram penitência neste mundo ou que, ao morrerem, carregaram alguma mancha venial.

O pecado venial e o purgatório nasceram praticamente ao mesmo tempo e uma estreita relação foi estabelecida entre eles. Os clérigos interessavam-se por uma sociedade decomposta e recomposta que segue critérios religiosos.

A ideia da categoria de pecado venial, ou pecado leve, cotidiano, habitual – isto é, perdoável –, surgiu pouco tempo anterior ao crescimento do purgatório e foi uma das condições do seu nascimento. Enquanto o purgatório não existia e o pecado venial estava mal definido, a tendência era considerar que esses pecados eram apagados pela prece e, eventualmente, pela confissão.

Também há uma diferença entre o pecado cometido cientemente e aquele que se faz por ignorância, ou seja, um pecado que jamais teria sido cometido se sua enormidade fosse conhecida é apenas venial, pois foi cometido por ignorância.

Como o julgamento futuro, final, geral, traz apenas duas possibilidades: a vida ou a morte, a luz ou o fogo eterno, o céu ou o inferno, o purgatório traz à luz um veredito menos solene, um julgamento individual logo após a morte, em que as imagens criadas pela cristandade medieval são representadas sob a forma de uma luta entre anjos e demônios. O purgatório não é um inferno perpétuo, mas temporário.

Para Guillaume d’Auvergne, escritor que inspirou Dante com o “De universo”, o purgatório é um lugar mais próximo do paraíso do que do inferno, um lugar onde se penetra encontrando-se primeiro as vítimas de mortes súbitas e violentas e mesmo suicidas. Para o escritor, o fogo do purgatório é uma espécie particular, diferente do fogo da geena, do inferno.

Segundo o Apocalipse, no dia do julgamento, os livros serão abertos e os mortos serão julgados segundo o conteúdo dos livros, mas outros livros de contas serão abertos, os do purgatório.

“E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante de Deus, e abriram-se os livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras. E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o inferno deram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras. E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte. E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.” – Apocalipse 20, 12-15.

No purgatório existem a confiança e esperança, pois é a antecâmara do paraíso. É o além provisório da maioria dos homens. É a exigência de justiça.

O purgatório triunfou na teologia e no plano dogmático. Tornou-se uma verdade de fé e da Igreja.

 

O purgatório de Dante

Um pouco mais de cem anos do nascimento do purgatório, o poeta italiano Dante Alighieri confere-lhe para sempre um lugar na memória dos homens.

Dante contribuiu para a insistência dogmática da Igreja e permeou o imaginário humano descrevendo o purgatório com genialidade.

O purgatório não é subterrâneo; é terreno, está no nível da Terra, sob o céu estrelado. É uma montanha cuja parte baixa é uma antecâmara, um lugar de espera. Ali esperam os que ainda não são dignos de adentrá-lo. Virgílio o anuncia ao companheiro:

“Chegaste agora ao purgatório

Vê lá embaixo a falésia que o encerra

Vê a entrada ali onde ela parece fendida” (versos 49-51)

 

O purgatório, como o inferno e o céu, é formado por sete círculos sobrepostos, cuja circunferência diminui conforme avança para o topo. As almas ali purgam os sete pecados capitais: o orgulho, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a gula, a luxúria.

Dante, antes de entrar, tem sua testa marcada sete vezes com a letra “p” (peccato – pecado). Na saída de cada círculo, um anjo apagará um dos pecados marcados.

Estão presentes os dois limbos, o dos sábios antigos e dos patriarcas – nele estão Platão, Aristóteles e tantos outros –; o das crianças do mundo cristão – aquelas mortas em tenra idade, marcadas apenas pelo pecado original. Ninguém poderia ser salvo no céu sem ter recebido o batismo.

No purgatório, as almas purgam-se, tornam-se sempre mais puras, aproximando-se mais das alturas. Para se passar de um círculo a outro, os viajantes sobem escadas íngremes.

A purgação se faz de três maneiras: por uma punição material que mortifica as más paixões e incita à virtude, pela meditação sobre o pecado a purgar e sobre a virtude oposta. Há, portanto, no purgatório, um tratado das virtudes e dos vícios. Por fim, a purgação se faz pela prece que purifica a alma.

A escalada do purgatório é uma ascensão para o bem, a retomada da navegação em direção a Deus, retardada pelo pecado. O progresso é o alívio da pena, como se a escalada fosse mais fácil.

Em muitos momentos, o purgatório lembra a Dante o próprio inferno.