O sistema de crenças

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   Os antigos gregos, que eram obcecados pelas forças naturais – ventos, tempestades, terremotos – e a impotência humana diante delas, concebiam seus deuses como corporificações humanoides superiores àquelas forças e a eles mesmos, que eram objetos dessas divindades. Como eles, os deuses eram corajosos e espertos, por vezes mal-humorados e vingativos, e o desafio era vencê-los pela persuasão ou pelo ardil.

   Uma ordem imaginada está sempre sob ameaça de colapso, porque depende de mitos, e os mitos desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles. Zeus e Hera, Osíris e Anúbis, por exemplo, foram poderosos nas regiões do Egito e da Grécia, mas hoje não têm autoridade alguma porque ninguém acredita mais neles. O homem comum acredita em sistema solar, em átomos, em prótons e em evolução com base na autoridade, porque os cientistas dizem que essas coisas existem. Toda e qualquer afirmação é criada com base no princípio de autoridade.

   Para salvaguardar uma ordem imaginada, são necessários esforços árduos e contínuos.  Cada pessoa nasce em uma ordem imaginada preexistente, e seus desejos são moldados desde o nascimento pelos mitos dominantes. Há uma correlação muito forte entre as crenças religiosas que uma pessoa aceita e as do ambiente familiar em que ela foi criada. É muito improvável que os seres humanos tenham uma faculdade interna confiável que dê origem à crença na existência de Deus, simplesmente.

   Santo Agostinho dizia que a crença é um ato do pensamento tão natural e tão necessário, que não se concebe a vida humana em que este não ocupe um lugar muito grande. A crença é tão somente um pensamento acompanhado de assentimento. Grande número de opiniões está fundado unicamente no assentimento ao testemunho de outrem. Algumas não afetam a maneira de viver; outras, ao contrário, são tais que colocá-las em dúvida acarretaria uma desordem profunda nos sentimentos e na vida.  A crença não tem nada de irracional, está fundada na credibilidade de alguns testemunhos e diz respeito, por consequência, ao que se refere à discussão racional à qual são submetidos. Há, portanto, dois tipos de conhecimento: das coisas vistas e das coisas acreditadas. Para outro pensador, Tomás de Aquino, “crer é um ato pelo qual o intelecto é determinado a aderir-se totalmente a algo que se lhe apresenta a vontade porque esse algo é suficiente para mover a vontade, não, porém, para mover o intelecto, enquanto parece bom ou conveniente o assentir a esse algo […] e essa é a disposição do que crê, como quando alguém crê nas coisas ditas por um homem, porque lhe parece adequado ou útil.” Assim, crer é a adesão do intelecto ao que consente a vontade como um bem, porque nesse bem há verdade que não contraria os princípios do próprio intelecto, motivo pelo qual o próprio intelecto assente ao que consente à vontade.

   As crenças e as descrenças, tal como comumente são concebidos esses estados, admitem graus. Surge, então, a questão de que grau de crença é necessário para se poder dizer que alguém acredita em algo, que Deus existe, por exemplo, ou que não existe. As pessoas têm crenças e afeições; são seres que têm objetivos e intenções; uma pessoa visa fazer que as coisas sejam de dada maneira, tenciona agir de modo que as coisas sejam da maneira que ela quer. As pessoas precisam de um deus, por exemplo, mas o querem em seus termos, sob seu controle.

   Os desejos pessoais se tornam as defesas mais importantes da ordem imaginada. Por exemplo, os desejos mais valorizados dos ocidentais de hoje são definidos por mitos românticos, nacionalistas, capitalistas e humanistas. No início do século IV, o Império Romano se viu diante de um amplo horizonte de possibilidades religiosas. Poderia ter escolhido qualquer um entre os vários cultos como credo de sua nação: o maniqueísmo (religião dualista sincretista que se originou na Pérsia, cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz – o bem – e o das sombras – o mal); o mitraísmo (culto à deusa Mitra, antiga religião de mistérios desenvolvida no século II a.C., na Índia, e que foi o principal oponente do cristianismo nas primeiras etapas de sua expansão); os cultos a Ísis (no Egito e na Babilônia, Ísis foi a deusa da Lua); o zoroastrismo (religião monoteísta surgida no Irã, baseada nos ensinamentos do profeta Zaratustra que viveu no século VI a.C.), o judaísmo e até mesmo o budismo eram opções disponíveis. Por que o Império optou pela crença no cristianismo? Havia algo na teologia cristã que atraía o imperador Constantino, ou talvez um aspecto da fé que o fez pensar que seria mais facilmente aplicável a seus propósitos? Ou ele pretendeu patrimonializar a igreja? Ele teve alguma experiência religiosa, ou algum de seus conselheiros sugeriu que os cristãos estavam ganhando devotos rapidamente e que o melhor seria aproveitar esse movimento? Os historiadores podem especular, mas não podem fornecer uma resposta definitiva. Podem descrever como o cristianismo tomou conta do Império Romano, mas não podem explicar por que essa possibilidade em particular se concretizou.

   Quando Constantino assumiu o trono em 306 d.C., o cristianismo não passava de uma seita pouco entendida e compreendida. O nome cristãos foi empregado pela primeira vez em Antioqua (Atos 11, 26) para designar os discípulos, aqueles que aceitavam o ensino dos apóstolos.

   A tradição judaico-cristã preocupava-se com a unificação e a ordem sociais – a Lei ou unidade do corpo de Cristo. Ao proporem seus fundamentos, elas englobaram a cosmologia de Ptolomeu centrada na Terra e a convicção platônica numa divisão entre este mundo terreno da matéria e o mundo do espírito. Para o mundo da matéria, os líderes do cristianismo adotaram com prazer os aspectos principais da ciência grega, rejeitando, porém, a ideia aristotélica de um universo que sempre existiu, uma vez que isso colide com a narração bíblica da criação. De certo modo, rejeitaram igualmente a doutrina aristotélica, que identificava a presença de metas, fins ou objetivos últimos, guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade de Aristóteles – a noção de que a matéria tem um sentido de propósito ou direção (a causa final defendida pelo filósofo) – pois isso ia contra a divisão entre a matéria e o espírito. Para o mundo do espírito, o judaísmo-cristão concebeu um Deus transcendente que permitia que Sua influência fosse sentida através das forças das esferas celestes, habitadas por várias hostes angélicas (a base da astrologia).

   O cristianismo acrescentou a intervenção terrena do Filho de Deus. Esse Ser Divino transcendente estava fora do tempo e da história. Nenhuma lei da física limitava a Sua imaginação. Seu Filho tomou forma material, mas também ele estava fora das leis da física e seu reino não era deste mundo. Daí o nascimento a partir da Virgem, os milagres e a ressurreição da carne. A ideia de igualdade do cristianismo, que afirma que todo indivíduo tem uma alma de origem divina e que todas as almas são iguais diante de Deus, pode ser afastada se não houver a crença nos mitos cristãos sobre Deus, criação e almas, o que significa dizer que todas as pessoas são iguais.

   Porém, a evolução se baseia na diferença, e não na igualdade. Cada pessoa carrega um código genético um pouco diferente e é exposta, desde o nascimento, a diferentes influências ambientais. Isso leva ao desenvolvimento de diferentes qualidades que carregam consigo chances de sobrevivência diversas. Em termos religiosos, o impulso básico em direção à maior coerência ordenada pode ser visto como a base física da graça, aquilo que permite, através do relacionamento, transcender a individualidade (a queda) e voltar à unidade (Deus). Em termos judaicos, o relacionamento salvador é a Lei; para os cristãos, o corpo de Cristo. A doutrina cristã versa sobre a volta a um estado ou condição anterior ou inicial. O judaísmo, monoteísta, ensina que um deus é o verdadeiro criador do Céu e da Terra, com perfeita coerência. Não possui uma doutrina da mortalidade e, portanto, nenhuma retribuição após a morte, mas apenas punições e recompensas temporais, distinguindo-se igualmente de todas as outras religiões.

   O budismo preocupa-se em como ver através das ilusões e como controlá-las. Portanto, concebe o Universo como algo parecido com o estado básico todo abrangente da consciência, uma consciência da qual a parte humana se separou. O desafio é voltar ao estado básico, atingir a união com o Universo e assim chegar ao nirvana: ausência de tempo e consciência/ inconsciência. A religião dos hindus, sobre a criação do mundo, diz que sempre se repete por meio de Brahma e há dogmas semelhantes de outras religiões. No discipulado hindu a pessoa sai com um mestre e sem esse mestre, geralmente, fica perdida e não consegue funcionar. Ela precisa do mestre em pessoa periodicamente, ou de seu retrato, de suas mensagens, ou pelo menos da técnica que o mestre usava: as paradas com a cabeça apoiada no chão e a respiração, que se tornam os meios fetichizados e mágicos de recriar o poder da figura da transferência. O discípulo pode, assim, ficar em pé sozinho, ser uma pessoa dona de si mesma.

   Alá, como indica o Alcorão, favorece as guerras religiosas contra os infiéis, isto é, contra as pessoas que rejeitam o islamismo.

   Suponha-se que, como ensinam as Igrejas Católica Romana e as fundamentalistas protestantes, exista o inferno e que a maior parte do gênero humano acabará nele, sofrendo tormentos sem fim. O judaísmo teve raízes na cabala, com base no enunciado claro da filosofia não dualista. Mas depois apareceu o Velho Testamento com seu conceito de um Deus irascível e o amor ficou limitado ao clã escolhido por Deus.

   A história da criação, a ideia da singularidade do homem, a ideia de um Universo centrado na Terra, o que a fazia merecedora de atenção especial do Deus transcendente, a credibilidade dos milagres e da ressurreição da carne foram se tornando problemáticas. Não é mais possível acreditar em ambos: nas descobertas da ciência moderna e nos ditames tradicionais da Igreja.

   Para um número considerável de pessoas, a ciência tomou hoje o lugar da religião tradicional. A humanidade quer, talvez mais do que nunca, compreender a si mesma e ao mundo, conhecer a história do Universo e a do seu lugar nele para formar um quadro coerente de como todos deveriam se comportar, e em direção a que objetivos se deveria lutar, para saber o que tem valor e o que não tem. E cada vez mais busca-se a ciência a fim de saber essas coisas. Porém a ciência tem suas limitações e interesses. Quando ela não oferece as respostas, as pessoas se sentem perdidas.

   Nem a física mecânica de Newton nem a biologia de Darwin disseram muito que possa contribuir para um quadro coerente do ser humano dentro do Universo. A física de Newton não tem absolutamente nada a dizer sobre a consciência nem sobre o propósito e os objetivos dos seres conscientes. A visão de mundo mecanicista fez muito pelo enfraquecimento das certezas do cristianismo, mas tem pouco valor espiritual para colocar em seu lugar.

   Analogamente, a biologia darwinista, quer em sua versão original, brutal e determinista (a sobrevivência do mais forte), quer na versão neodarwinista, com ênfase na evolução aleatória, tem pouco a dizer acerca do porquê de se estar aqui, de como é o relacionamento com o surgimento da realidade material, e muito menos acerca do propósito e significado de qualquer evolução da consciência além da conclusão muito simples e utilitária de que a consciência parece conferir alguma vantagem evolutiva.

   A ciência mecânica trouxe grande quantidade de conhecimento, mas nenhum contexto que permitisse interpretá-lo ou relacioná-lo ao homem ou às suas preocupações e interesses. Da mesma forma, a tecnologia fornece um padrão de vida muito mais elevado, mas nenhuma noção do que é a vida – nenhuma melhora na qualidade de vida. Esse tipo de ciência e tecnologia não diz nada sobre a humanidade, deixando-a com uma sensação de alienação do ambiente material. Isoladas, sem nenhum complemento espiritual, essa ciência e tecnologia afastam os seres uns dos outros e do mundo. Os seres humanos, com sua necessidade de formar um mundo coerente, contribuem muito para o fomento desse processo de coerência em evolução, primeiro como espécie, depois como indivíduos, e finalmente através dos relacionamentos e da cultura. Cada qual é um estágio avançado na criação de maior coerência ordenada, e em cada estágio de sua evolução, esse processo estaria, em si, em diálogo com o vácuo (Deus?) sendo Ele, portanto, mais acessível. Esse Deus, que está inseparavelmente contido na Natureza de um ser ou de um objeto, estaria sempre empenhado num diálogo criativo com Seu mundo, conhecendo-Se a Si mesmo na medida que conhecesse Seu mundo. É nesse nível que cada um se pergunta por que nasceu e por que deve morrer, qual o sentido da vida e suas lutas, qual o bem que se está fazendo, qual o sentido do sofrimento, e qual o seu lugar no plano geral das coisas.

   Durante a maior parte dos últimos dois mil anos, a grande maioria das pessoas no ocidente abraçou, com sucesso, a cosmovisão judaico-cristã, quer se fosse membro de um grupo religioso ou não. Obviamente, essa cosmovisão oferecia algum sentido a respeito de como o indivíduo se relacionava com o cosmo e com a natureza. Os seres humanos eram criação especial do Deus transcendente, feitos à Sua imagem. Vive-se a vida conforme uma ordem ditada por Deus e tem-se o domínio de toda a Terra. No fim dos dias, todos passarão por algum tipo de julgamento, renascimento ou vida após a morte. Mas essa ordem ditada por Deus não se relaciona apenas com o cosmo, mas praticamente com todos os detalhes da vida social e pessoal. Através da crença em Deus e a aceitação de Sua Lei ou Seu Filho na Terra, o indivíduo tem como saber se comportar e se sentir diante dos outros, como conduzir seus negócios e educar seus filhos, e como construir suas cidades. Há muitas exceções triviais, rotineiras, mas cada indivíduo tem um tema unificador percorrendo sua vida em todos os níveis, um sentido de quem ele era e qual o seu lugar e por que sua vida tinha sentido.

   No sistema religioso dominante no ocidente, o amor a Deus é essencialmente a mesma coisa que a crença em Deus, a existência de Deus, a justiça de Deus, o amor de Deus. É essencialmente uma experiência do pensamento. As maiores linhas de pensamento do mundo ocidental, creio, podem ser reduzidas à linha de pensamento grego e à judaica. A linha de pensamento grega é a linha do “ou … ou”, que infectou todo o ocidente. O Novo Testamento é o melhor reflexo disso. Existem salvos ou condenados, existem filhos da luz ou da escuridão. Isso é uma pintura em preto e branco, cuja fantasia nem mesmo consegue alcançar o cinza.

   A linhagem filosófica e religiosa da cultura ocidental tem suas origens nos trabalhos de Aristóteles, Sócrates, Platão, Parmênides e Pitágoras[1], e passa, então, por Santo Agostinho e Tomás de Aquino[2], Maimônides e Spinoza[3], Hegel e Heidegger[4], impregnando de muitas formas nas ideias de Buda e de Nagarjuna[5], Shankara e Sri Aurobindo[6], Fa-Tsang e Zhu Xi[7], Ibn Sina e Ibn Arabi[8]. Nas religiões orientais e no misticismo, o amor a Deus é a experiência de uma intensa sensação de unidade, inseparavelmente unida à expressão em todo ato de vida.

   Segundo o escritor Gordon Allport, nos sistemas religiosos hindus, cada um que é iniciado recebe de seu guru um nome secreto de Deus. Allport diz, portanto, que apenas uma parte da verdade pode ser conhecida. Cada um recebe esse nome secreto e não pode revelá-lo, ninguém pode revelar que nome do aspecto de Deus lhe foi dado em segredo. Assim, passa a existir uma grande quantidade de confissões e religiões. Dessa forma, então, pode-se perguntar se esse pluralismo religioso algum dia será superado com o surgimento em seu lugar de um universalismo religioso.  Parece-me que não se está indo ao encontro de uma realidade religiosa universal e que, em oposição, caminha-se para uma religiosidade profundamente pessoal, a partir da qual cada um encontrará sua linguagem, própria, pessoal, sua linguagem particular, quando se dirigir a Deus.

   Religiões e ideologias não santificaram a vida em si mesma. Santificaram sempre algo que está acima ou além da existência terrena e, consequentemente, foram bem tolerantes com a morte. De fato, algumas delas mostraram-se bastante afeiçoadas ao Anjo da Morte. Uma vez que o cristianismo, o islamismo e o hinduísmo insistiam que o significado da existência dependia da sina no pós-vida, elas consideravam a morte como parte vital e positiva do mundo. Humanos morriam porque Deus assim decretava, e o momento de sua morte era uma experiência metafísica sagrada e repleta de significado. Quando um ser humano está próximo de seu derradeiro suspiro, é hora de convocar sacerdotes, monges e xamãs, fazer o balanço de sua vida e assumir seu verdadeiro papel no universo. É possível imaginar o cristianismo, o islamismo ou o hinduísmo em um mundo sem mortes? Isso seria, também, um mundo sem céu, inferno ou reencarnação. Confundindo e embaralhando o sistema de crenças, o que aconteceria? A fé é, portanto, o motor da criação.

   O Antigo Testamento, por exemplo, foi escrito no primeiro milênio a.C., e suas histórias mais antigas refletem a realidade do segundo milênio anterior a Cristo. Mas, no Oriente Médio, a era dos caçadores-coletores havia terminado mais de sete mil anos antes. Não é surpreendente, portanto, que a Bíblia rejeite crenças animistas e que sua única história com essa característica apareça logo no início.

   A Bíblia é um livro repleto de milagres, eventos assombrosos e maravilhas. Entretanto, a única ocasião em que um animal entabula uma conversa com um ser humano é quando a serpente incita Eva a comer do fruto proibido do conhecimento (a mula de Bil’am – Bil’am foi um filósofo, feiticeiro e intérprete profissional de sonhos, da tradição judaica – também pronunciou algumas palavras, porém ela está apenas transmitindo uma mensagem de Deus). A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden tem uma semelhança notável com a Revolução Agrícola. Em vez de permitir a Adão que continuasse a coletar raízes, folhas e frutas silvestres, um Deus irado o condena a “comer o pão com o suor de seu rosto”. Talvez não seja coincidência, então, o fato de os animais na Bíblia só falarem com humanos na era pré-agrícola do Éden.

   Segundo o filósofo e teólogo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), o homem em um primeiro momento é pura possibilidade. Kierkegaard escreveu que, quando Adão e Eva ainda estavam no paraíso, no estado de inocência, foram advertidos para não comerem do fruto de uma árvore do conhecimento. Eles não podiam entender do que se tratava, porém, essa advertência, ou melhor, a proibição é que desperta neles a possibilidade de liberdade. Nesse momento eles são repelidos, e ao mesmo tempo, atraídos por essa situação. Eles são colocados diante da possibilidade de fazerem uma escolha; a proibição desperta-lhes o desejo de ser como Deus. Estão diante de uma possibilidade, mas essa possibilidade também lhes causa vertigem. É a proibição que desperta neles o desejo de conhecer.

   A história bíblica tem camadas mais profundas e mais antigas de significado. Na maioria das línguas semitas, Eva significa serpente fêmea. O nome da mãe bíblica ancestral oculta um mito animista arcaico, segundo o qual as serpentes não são inimigas, e sim antepassadas. Muitas culturas animistas acreditam que os humanos descendem de animais, inclusive de serpentes e outros répteis. Os povos Aranda e Dieri, também australianos, sustentavam que suas tribos, especificamente, eram originárias de lagartos ou serpentes primordiais que foram transformados em humanos. Porém, se Deus não existe na esfera dos valores, não se tem desculpas para o que está antes, nem justificativas para o que está adiante.

   John Lubbock (inglês, conhecedor de diversas ciências, 1834-1913) estudou povos primitivos da Austrália e da Terra do Fogo, concluindo que a humanidade seria basicamente ateia em suas origens, isto é, que o conceito de divindade veio apenas mais tarde na evolução humana.

   O homem não é nada além de escolhas, da capacidade plena de fazer escolhas e criar valores, mas as escolhas exatas em si são desnecessárias ou mesmo sem fundamento. Não há razão para elas, nenhum imperativo moral ou natural subjacente dizendo que devem ser de um tipo ou de outro. Assim, pode-se escolher o compromisso com alguém ou com um determinado conjunto de valores hoje, mas, exatamente da mesma forma, poder-se-á escolher algum outro amanhã. Assumindo-se que o homem tem um pensamento, e este exerce uma atividade que lhe é própria a fim de adquirir o conhecimento, trata-se da razão. Enfim, o próprio conhecimento obtido pela razão, ou visto da verdade enfim adquirida, é a inteligência. Crer é uma certa maneira de saber, anterior ao saber, e é um conhecimento do pensamento, como é a ciência propriamente dita.

   A justificação, tal como é concebida, envolve dois elementos. Primeiro uma crença está justificada apenas se for uma resposta responsável e apropriada aos indícios, em particular aos de que a crença seja tratada como um operador modal. E, segundo, para estar justificada, a crença tem de ser produzida por uma ou mais faculdades, ou processos de produção de crença confiáveis.

   Quanto à crença em um deus, David Deutsch (físico israelense da Universidade de Oxford – 1953) disse que o melhor que se pode fazer é encontrar o devido “ponto final” explicativo que, para ele, é a existência de Deus. Richard Swinburne (filósofo britânico, professor de Oxford – 1934) afirmou que reconhecia que a própria existência de Deus não tem explicação.

   Há um misticismo em todas as religiões do mundo, como há percepções comuns da natureza da realidade, conhecimento, ética e vida espiritual, apesar da grande variedade de doutrinas, práticas e culturas. Se os místicos judeus, os contemplativos cristãos, os praticantes de meditação, os hindus, os budistas e os eruditos taoístas fossem capazes de dialogar entre si, iriam além das suas diferenças e viriam a concordar em compartilhar a mesma percepção, a de que é necessário viver a vida com as mesmas intenções básicas.

[1] Aristóteles, Sócrates, Platão, Parmênides e Pitágoras foram filósofos gregos da antiguidade.

[2] Santo Agostinho e Tomás de Aquino foram importantes teólogos cristãos em suas épocas.

[3] Maimônides foi estudante da doutrina judaica e escritor, e Spinoza, filósofo holandês.

[4] Hegel e Heidegger foram filósofos alemães.

[5] Buda ou Sidarta Gautama foi mestre da doutrina budista, e Nagarjuna, filósofo budista indiano.

[6] Shânkara foi metafísico, teólogo e monge indiano, e Sri Aurobindo, filósofo indiano.

[7] Fa-Tsang, foi filósofo budista chinês, e Zhu Xi, confucionista.

[8] Ibn Sinã, pensador e escritor uzbeque, e Ibn Arabi, filósofo hispano-muçulmano.