Os amores humanos

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Nem todo amor é virtuoso. Há quem ame o dinheiro ou, então, o poder. Imagine-se um enunciado das suas virtudes: fulano (você) ama a glória! Imagine-se, também, alguém que não amasse nada, ninguém (terrível!). O amor ao próximo, aquele em que não se é nem amante nem amigo, chama-se de amor à caridade. Para o homem comum não é um dever. Immanuel Kant (filósofo prussiano, antiga Alemanha do norte, 1724-1804) explicou: “o amor é uma questão de sentimento e não de vontade. Ora, não se pode ordenar um sentimento…”. Que sentido prático pode ter o mandamento “amar ao próximo como a si mesmo?” (Mateus 22, 39). Kant, um cristão, um luterano devoto, perguntava-se como o “Santo Evangelho” pode ordenar uma coisa, o amor, que não pode ser ordenada? É forçoso reconhecer que quando se sai do âmbito da família, amar é pedir demais. Os filhos são amamentados por amor, não por questões morais. Quando existe amor não é preciso preocupar-se com moral.

Novamente Kant, em Metafísica dos costumes, escreveu: “O que se faz por coerção, não se faz por amor”. Quantas pessoas são amadas o suficiente para se estar liberado, em relação a elas, de toda a obrigação estritamente moral, de todo dever? Há os filhos. Eventualmente os netos. O cônjuge? Com o tempo se descobre, no casal, que o amor nem sempre basta, que a moral reassume seus direitos e a humanidade, seus deveres. Os pais? Aqui também é raro que o amor seja suficiente. Às vezes a moral supre as insuficiências do amor. Muitas vezes é por dever que se faz o que é possível para ajudá-los, para ampará-los, para acompanhá-los. Os poucos amigos? Façamos as contas: os filhos, eventualmente o cônjuge, os pais e os amigos mais próximos. Por que se ama os filhos tão mais que os filhos dos outros? Por que eles são mais amáveis? Não. Ao contrário. É porque se ama mais que, para cada um, eles são os mais amáveis que os outros. O amor cria o valor, muito mais do que depende do valor. Tem-se, portanto, somente a moral que, às vezes leva a se fazer um pouco do bem. A moral manda agir como se houvesse amor. É uma aparência de amor. Afinal, pedir-se para amar é demais. O homem é quase incapaz disso, mas atua como se amasse. O próximo, o outro, não é nada amável, ou não se sabe amá-lo.

Estou convencido de que o homem é incapaz do amor universal. Inventou-se a generosidade para suprir a falta de amor: é virtude moral, virtude da doação. Quando não se é capaz de dar por amor, age-se como se houvesse amor. Pelo menos se é generoso. Trata-se de fazer como se existisse virtude. Se o agir é como se houvesse amor, se a generosidade e a polidez são aparências da moral, o que aconteceria se as pessoas parassem de aparentar? Mas quando se age verdadeiramente por amor (os raros momentos de santidade) é o que se chama de amor incondicional. Amar os filhos, amar o homem ou a mulher por quem se está apaixonado não é o mesmo amor, o amor incondicional. Esse é o amor universal, o amor pelo outro. Amar os pais, amar os amigos é, também, outro tipo de amor. Pode-se também amar o dinheiro, o poder, a glória, como já foi dito. Pode-se amar a sua cidade, a música, a liberdade, pode-se amar a si mesmo. Amar a si mesmo? Se não se pode amar alguma coisa que está fora de si mesmo, por que o eu necessita do amor a algo além de si mesmo para a própria individualização?

No livro A arte de amar, de Erich Fromm, são descritos alguns diferentes tipos de amor. Os gregos, na antiguidade, utilizavam três palavras para designar três diferentes tipos de amor: éros, phília e agápe. Os três nomes gregos do amor, ao menos os principais. Éros na linguagem moderna se deu, por derivação, os adjetivos erótico ou erógeno. Na mitologia, Éros não é o deus da sexualidade, representado por Hímero, o deus do desejo, por Príapo (filho de Afrodite e Dionísio, que nasceu feio e com uma eterna ereção, porém impotente) ou Afrodite (deusa da sexualidade e da beleza na mitologia grega); Éros é o deus da paixão amorosa. Segundo Platão, é o amor, mas não qualquer amor. É um amor muito particular, o amor que se sente quando se está apaixonado. Há quem diga que é o amor que as senhoras sentiam por seus maridos, antes de eles se tornarem seus maridos.

Na opinião quase unânime dos filósofos, o mais belo texto já escrito sobre esse amor (éros) é de Platão e se chama Banquete. O texto é um relato de um diálogo (como quase sempre em Platão); os convidados se reúnem certa noite para festejar o sucesso de um deles, Agathón. O prazer de uma noitada entre amigos depende muito do prazer da conversa e, então, escolhem um tema. Naquela noite escolheram o mais belo de todos: decidem falar de amor, ou, do amor, afinal é um jantar entre homens, e as confidências não são o forte. No decorrer do banquete discursam Fredo, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e, enfim, Sócrates, a que se seguirá Alcebíades, que chega tarde e completamente embriagado. Os discursos parecem ser uma tentativa de definição e o elogio do amor. Os de Aristófanes e o de Sócrates foram os dois que impressionaram os espíritos.

Aristófanes, um poeta, havia escrito uma peça de teatro, As nuvens, na qual debochava de Sócrates: foi o pecado dos pecados. Platão foi aluno e amigo de Sócrates, já falecido quando escreveu Banquete. Aristófanes descreve o amor tal como se gostaria que ele fosse. Sócrates descreve o amor não como se gostaria que fosse, mas como é: sempre condenado à carência, à incompletude, ao sofrimento. No discurso de Aristófanes a ilusão vem primeiro. Ele é um poeta; portanto, Platão o faz pronunciar um discurso de poeta. Pouco conceitual e muito imaginativo, Aristófanes conta uma história que se passa num tempo primordial. Naquele tempo, explica, a humanidade não era como é vista hoje. Cada homem, cada mulher era duplo, portanto, de uma unidade perfeita. Os humanos não tinham dois braços e duas pernas, tinham quatro braços e quatro pernas. Tinham dois rostos, um na frente, outro atrás. Não tinham um sexo, mas dois sexos. Uns tinham dois sexos de homens; outros tinham dois sexos de mulheres; outros, enfim, tinham um sexo de homem e um sexo de mulher, o que originou “o mito dos andróginos” (tema atualíssimo).

Esses humanos primordiais, super-humanos, empreenderam escalar o céu para atacar os deuses. Os deuses, óbvio, não gostaram e foram falar com Zeus, o deus dos deuses, cuja primeira ideia foi exterminar a humanidade, empregando o raio (os deuses há muito buscam destruir a humanidade!). No entanto, um deus alertou para o fato de que os homens construíam templos, faziam preces, sacrifícios … Homenagens deleitáveis para um deus grego, às quais eles não tinham a menor vontade de renunciar. Após ter refletido, Zeus considerou e disse aos seus pares: “Tenho uma ideia melhor! Vou cortar esses humanos em dois, de alto a baixo, pelo meio. Eles serão duas vezes mais numerosos, o que dará duas vezes mais templos, preces, sacrifícios; e serão duas vezes mais fracos, já não poderão subir ao céu. Com dois braços e duas pernas vão ver que não conseguem”, disse Zeus. Assim, todos os humanos foram cortados pelo meio. Os homens foram amputados, literalmente, da sua metade. Desde essa cisão original, que fez passar da unidade para a dualidade, da completude à incompletude, os humanos procuram a metade que lhes falta. Como diz Platão, “de uma peça só”, todos deixaram de ser um ser humano completo. A humanidade passou, então, a ser incompleta, inacabada, fadada para sempre a sentir falta dessa metade que lhe foi tirada.

Segundo a história, Aristófanes quer reunir novamente as duas partes, a conquista da alegria e da felicidade. A unidade original, a completude reencontrada e o que chamou de amor. Somente o amor, explica Aristófanes, é capaz de “fundir dois seres num só e curar a natureza humana”. Eis o que é o amor: o desejo de “se unir com o ser amado e se fundir nele, de modo que sejam um só ser em vez de dois”. É essa, conclui Aristófanes, “a maior felicidade que podemos alcançar”. No entanto, o que Aristófanes esconde, pelo menos sobre esse amor éros? Primeiro, que é um amor exclusivo (só se pode amar, em definição, um único indivíduo). Depois, que é um amor definitivo, é para toda a vida, até para depois da morte. Terceiro, é um amor que sacia, “a maior felicidade que se pode alcançar”. Por último, é um amor que põe fim à separação e à solidão: “ser apenas um em vez de dois”. O discurso de Aristófanes é falso, ilusório.

O discurso de Sócrates atribui ao amor as qualidades maiores e mais belas, verdadeiras ou não. Só diz a verdade. Ensinaram a ele. Recebeu-a de uma mulher, Diotima de Mantinea, ela mesma perita em amor e que fora sua professora. O que Diotima revelou em o Banquete? Que o amor (éros) é desejo e o desejo é falta. Todo amor, explica Sócrates, é amor que se deseja e faz falta. Como poderia desejar o que se tem ou está presente? Se o marido malvado e o príncipe encantado são o mesmo homem, como aquele pode matar este? Deve haver uma diferença entre um e outro. O príncipe encantado é o marido que falta; o marido malvado é o príncipe encantado quando já não falta. Éros, então, não deseja apenas possuir o bem. Ele deseja possuí-lo sempre: ele é o desejo da posse eterna. É por isso que todo amor é amor à imortalidade. Ele quer durar sempre, possuir sempre. Na linguagem platônica, é descobrir que alguém faz falta terrivelmente. A expressão amor platônico designa um amor puramente ideal. O que Sócrates e Diotima propõem é subir por graus de um amor a outro, do amor mais baixo, que também é o amor mais fácil, ao amor mais elevado, que também é o mais raro e mais exigente. Platão utiliza um argumento em defesa da mulher nas questões do amor.

Phília é o amor alegre. É um outro amor, não é a paixão amorosa. Ele é afeto, ternura, apego. O amor entre os pais e filhos não é denominado éros. Quando Aristóteles, dissidente discípulo de Platão, que foi casado duas vezes, quer descrever o amor entre o homem e sua esposa ou entre a mulher e o seu marido, ele escreve phília. Ou se ama o que não tem e que faz falta (éros), ou se ama o que existe, o que não faz falta (phília). De um lado, Platão e Schopenhauer, o polo da falta, portanto do tédio. Do outro lado, o polo da potência, portanto da alegria, do prazer, de Aristóteles e Espinosa. Não há felicidade sem ele. Mas ele também pode não ser suficiente. Amar ou ser amado nunca foi suficiente para a felicidade. A maior parte das histórias de amor percorrem o entremeio que separa ou une os amantes. Quase sempre elas começam em Platão. Depois, com o tempo, alguns caem em Schopenhauer (quando já não há falta, há tédio). Outros subirão de Platão a Espinosa (predominam os momentos de alegria). Há momentos de prazer, de confiança, de confidência e de amor. A amizade mostra uma proximidade de semelhança ao divino, onde os santos aumentam o contentamento que cada um tem por Deus. Mas phília não é o amor divino. E não é éros: ele possui menos interação com os nervos; não tem uma voz sensual; nada que faça acelerar os batimentos cardíacos ou ficar corado, ou pálido. Phília é o que Aristóteles classificou entre as virtudes, ou Amicitia, a respeito da qual Cícero escreveu um livro: Não há bem maior do que a amizade. Todos podem se tornar alvos da afeição, da amizade: os feios, os tolos … O beijo da afeição é diferente do beijo de éros.

Rainer Rilke, um poeta tchecoslovaco (1875-1926) tem razão, em Cartas a um jovem poeta, quando constata que o casal não é o fim da solidão: é antes o encontro e a convivência de “duas solidões que se protegem mutuamente, que se completam, limitando-se e inclinando-se uma diante da outra.” Não é menor amor. Observemos o filho: ele pega o peito. É éros, o amor que pega, que quer possuir e guardar. O peito lhe é retirado: ele chora. O peito lhe é devolvido: ele se alegra. A criança não pega o peito para o bem da mãe, nem porque ama a mãe. Nem sabe o que é uma mãe, pois acaba de nascer. Ele pega o peito porque está com fome, porque está com frio, porque está com medo. Egoísmo? O ego já se constituiu? Observemos a mãe: ela dá o peito. Não é o amor que toma (éros), é o amor que dá (phília). Ela dá o peito para o bem do filho frágil. Ele tem muito pouco. O que se poderia tomar dele? A imagem de uma mãe cuidando do seu filho apresenta certo paradoxo: a carência e o amor necessário são óbvios. Éros e phília se misturam e sucedem um ao outro, de momento a momento. Mas agápe existe sozinho. Sem éros haveria procriação? Sem phília todos seriam cuidados? Esses dois amores não podem ser considerados estranhos um ao outro, separados. Os amores humanos podem ser imagens notáveis do amor divino: as aproximações das semelhanças.